- Pedro Valls Feu Rosa - http://pedrovallsfeurosa.com.br -

A armadilha do tempo

Dia desses fui a uma formatura e fiquei a meditar sobre como é belo o início de qualquer carreira. Lá estavam dezenas de novos profissionais jurando, de pé e solenemente, dedicação à causa do bem e da humanidade.

É assim que começamos nossas caminhadas – que nos conduzirão ao encontro daqueles que serão nossos primeiros clientes, semelhantes nossos, apresentando esperançosos, com os olhos, os seus pedidos. São, no mais das vezes, pretensões básicas – algo relacionado à saúde, à vida ou à integridade física ou moral.

Estes primeiros pacientes são afortunados! Com que carinho nos debruçamos sobre seus casos! Lemos e relemos cada documento e pesamos criteriosamente todas as circunstâncias, a fim de que nosso diagnóstico seja absolutamente preciso e que o bem da vida enfraquecido seja fortalecido e saia saudável de nossas salas.

Nestes primeiros dias nós até recebemos as famílias temerosas pela sorte dos seus entes queridos, e pacientemente as ouvimos e confortamos. Terminado o expediente diário deixamos nossos locais de trabalho com a alma leve de quem passou o dia a recitar uma linda oração.

Mas eis que os dias vão se passando e o desfile das misérias humanas não diminui – pelo contrário só aumenta, juntamente com o nosso torpor. Decorridos alguns meses, o sofrimento do próximo passa a ser cada vez mais apenas uma rotina desconfortável, desagradável ao espírito e aos sentidos. Lentamente, sem que o percebamos, passamos a ser vítimas daquele que Ralph Waldo Emerson definiu como “o pior veneno”: o tempo!

Inadvertidamente, passamos a estudar cada caso com atenção cada vez menor, e quanto mais experientes mais delegamos tarefas a auxiliares que não tem experiência alguma, em uma total inversão de lógica. Atender familiares? Tanto maior o tempo de profissão, menor o tempo que dedicamos a ouvi-los e confortá-los.

Na maior parte das vezes, vítimas do passar do tempo, e sem que o percebamos, só nos damos ao trabalho de alguma pesquisa mais extensa quando nos deparamos com algum daqueles casos polêmicos, acompanhados pelos jornais. Diante de tais casos não é raro prepararmos longos estudos, recheados de citações de autores europeus e norte-americanos.

Já quanto aos demais, o tempo que dispensamos muitas vezes acaba sendo inversamente proporcional à duração de nossas carreiras. Assim, às expressões “a situação é conhecida”, “trata-se de um quadro comum” ou “é mais um daqueles casos” não raramente seguem-se remédios amargos, daqueles que causam dor e sofrimento durante anos a fio. Não se veja aí, e deixo isto muito claro, nada além de um fenômeno puramente humano – a acomodação e a perda de sensibilidade diante de uma rotina. Só isso, e nada mais do que isso – mas, ao mesmo tempo, tudo isso!

Já veteranos, e encerrado o expediente, deixamos os nossos ofícios não mais com aquela alma leve dos primeiros dias, mas com uma sensação estranha de alívio por estarmos saindo daquela passarela na qual desfilam as mais pungentes misérias humanas. Sim, lenta e imperceptivelmente, o nosso sentimento passa a ser quase que de alegria por estarmos ganhando distância daquele ambiente tão pesado.

Dizem alguns que este fenômeno – aquela perda de sensibilidade que só o tempo traz – acontece em todas as profissões, das mais simples às mais complexas. Que tal meditarmos sobre isso? Afinal, como ponderou sabiamente J. Wu, “grande homem é aquele que não perdeu o coração de criança”.