- Pedro Valls Feu Rosa - http://pedrovallsfeurosa.com.br -

A dignidade das filas

Começo estas linhas lembrando Honoré de Balzac, segundo quem “a igualdade pode ser um direito, mas não há poder sobre a Terra capaz de torná-la um fato”. Fiquei a pensar sobre isso há alguns dias, contemplando uma fila.

Filas são inevitáveis. Fazem parte da realidade humana. Ou, refazendo a frase, fazem parte da realidade daqueles humanos que são menos iguais do que alguns outros. Que o digam os passageiros do aeroporto inglês de Luton: nele, quem tem uns US$ 5 paga e “fura” a fila da segurança, sendo inspecionado e liberado para embarque praticamente sem qualquer demora.

Você planeja ir a um parque de diversões mas não gosta de filas? Se seu destino for o Alton Towers, no Reino Unido, sem problema – basta pagar US$ 160 e passar na frente dos mortais. Ainda naquele país, em Londres, há uma torre panorâmica cujo ingresso custa em torno de US$ 35. As filas costumam ser imensas – a menos que você se disponha a pagar US$ 50, ganhando o direito de “furá-la” dentro da lei.

Nos Estados Unidos, recentemente foi anunciada uma peça de teatro estrelada por Al Pacino. As filas eram imensas, e para todos. Isto é, para quase todos – quem tivesse uns US$ 125 disponíveis ficava isento.

Na China o problema são as filas para atendimento em hospitais. Eis aí um momento de especial dor e angústia – afinal, estamos falando de seres humanos doentes. Como seria de se esperar, surgiram aqueles que passaram a tirar o sustento exatamente destas filas. São pessoas que ficam ali durante horas a fio, se necessário até dias, esperando a vez de agendar uma consulta para algum doente. O problema é que eles começaram cobrando muito pouco por esta tarefa – apenas uns R$ 5 – e logo formou-se uma outra fila para acessar os serviços dos eliminadores de fila. Diante desta crise as coisas logo se arrumaram, e hoje a venda de agendamentos de consulta sem fila já segue aquela lei tão conhecida da “oferta e da procura”. Alguns hospitais chineses reagiram a esta prática, disponibilizando “cartões especiais de atendimento” a quem possa pagar para evitar todos os incômodos das filas – ou seja, eliminaram os “atravessadores”.

Esta realidade já começa, aqui e ali, a chegar ao Brasil. Enquanto isso, há alguns anos o governo suíço começou a procurar um local para depositar dejetos radioativos. Cogitou-se de depositá-los nos arredores de uma pequena cidade chamada Wolfenschiessen. Pois bem: selecionado o local, começaram um processo de consulta à população, inicialmente sob a forma de pesquisas de opinião pública.

Uma primeira pesquisa, na qual perguntou-se se a população aceitaria que dejetos nucleares fossem armazenados ao lado da cidade, encontrou o apoio de 51% das pessoas. Constatou-se que a maioria dos moradores repudiava a ideia, mas ao mesmo tempo compreendia tratar-se de uma necessidade do país.

E eis que o governo decidiu realizar uma segunda pesquisa após “dourar a pílula” oferecendo um pagamento anual a cada morador da cidade – e não era pouco dinheiro, quase US$ 10 mil por pessoa. O resultado: o apoio à iniciativa caiu para 25%, pois a maioria simplesmente não admitia ser “vendida”.

É diante deste belo exemplo, vindo de uma pequena e desconhecida cidade, que fico a me perguntar: o que se vende para quem compra um lugar em uma fila qualquer, seja para um brinquedo ou para um transplante de órgãos? Talvez esteja sendo vendida ali, sem que nos tenhamos dado conta, a dignidade de toda uma raça…