- Pedro Valls Feu Rosa - http://pedrovallsfeurosa.com.br -

A reforma do judiciário

Há, em filosofia, as chamadas verdades apodíticas. Referem-se a fatos e coisas que, dada sua notoriedade e evidência, não necessitam de comprovação.

Assim, tudo aquilo que constitui uma verdade apodítica, não é objeto de discussão, porque dispensa toda e qualquer prova.

Dentro dessa linha de raciocínio, considero verdades apodíticas:

  1. que a prestação jurisdicional, no nosso País, é precaríssima; 2. que a Justiça é lenta; 3. que a Justiça é elitista e cara. Basta dizer que apenas 30% da população chegam ao Judiciário, enquanto mais de 100 milhões de brasileiros ignoram a existência dos magistrados e da Justiça.

Bem recordou o Ministro Torreão Braz, ex-presidente do Superior Tribunal de Justiça, que o povo “menosprezado desde a colonização, ficou sem dispor de real e eficaz acesso à Justiça, por dificuldade, quase impossibilidade, de obter a prestação jurisdicional imprescindível à defesa de seus interesses”.

Partindo desses pressupostos básicos, acho que deveremos passar – isso, sim – ao debate das causas dessa precariedade, lentidão e elitismo.

Numa análise rápida e sumária, despontam, desde logo, vários motivos relevantes:

1º – Reduzido número de juízes. Enquanto a média aconselhável seria um juiz para 400/500 habitantes, e, no máximo – como se dá na maioria dos países evoluídos do mundo – um juiz para 700/800 habitantes, aqui no Brasil a média é superior a um juiz para 40.000 habitantes. Temos regiões onde a jurisdição de um só juiz alcança mais de 50 mil habitantes. Aqui no Espírito Santo, nossa média, que é uma das melhores do País, gira ao redor dos 30 mil habitantes.

Sem deixar de lado a notável influência dos outros aspectos a serem analisados, não resta dúvida que essa relação juiz/habitante é de fundamental importância. Basta dizer que nas comarcas pequenas, de reduzido número de processos, apesar da incidência de todos os demais fenômenos, a Justiça anda rigorosamente em dia.

Por outro lado, temos Varas e Comarcas aqui no Espírito Santo, onde, se parar o recebimento de processos, o Juiz, trabalhando ininterruptamente, só colocará em dia o serviço daqui a 3 ou 4 anos.

2º – Processo anacrônico, emperrado, difícil, lento por sua própria natureza. O mais espantoso, ainda, é a extraordinária quantidade de recursos que possibilita.

Há pouco tempo tive oportunidade de examinar um processo, no qual contei 54 recursos – e ainda não havia saído para a instância excepcional.

Vejamos: o autor requereu uma cautelar; nessa cautelar, pediu uma liminar; o juiz concedeu a liminar; foi feito pedido de correição parcial ao Desembargador Corregedor, interposto agravo de instrumento, e impetrado mandado de segurança da concessão de liminar da cautelar; o desembargador deu a liminar; agravou-se da liminar do Desembargador e impetrou-se mandado de segurança contra a liminar do desembargador. A essa altura o processo já estava chegando ao conhecimento do Superior Tribunal de Justiça, os autos se enchiam de folhas, e se discutia apenas uma liminar numa cautelar – ainda não se discutia sequer o mérito da cautelar, quanto mais o mérito da ação principal. E já estávamos com 5 recursos em movimento.

  1. Justiça elitista. Elitista, porque cara. Todo seu funcionamento exige dinheiro. Sem falar nas despesas normais e extraordinárias, a instauração de um processo e seu bom acompanhamento exigem advogado preparado, culto, apto, conhecedor do direito, dos meandros dos recursos e das sutilezas da ciência jurídica. Atualmente o bom advogado, culto e preparado, tem que estar, além disso, apoiado por um serviço de informática, com investimentos vultosíssimos e constantes. Isto sem dispensar a aplicação de recursos ilimitados na compra de livros, todos caríssimos, assinatura de revistas de doutrina e jurisprudência.

A batalha judiciária é a luta entre duas inteligências, na luta pelo direito. E só quem pode expor e sustentar com segurança esse direito é o advogado dotado de suficiente e abalisada formação técnica.

Isso a gente vê perfeitamente na rotina diária. Quantas pessoas perdem suas questões, muito embora apoiadas pelo bom direito, dada a desigualdade na contenda – de um lado, um advogado culto, bem pago, apoiado por uma boa biblioteca; o outro, fraco, desprovido de cultura jurídica, que perde até prazos.

À primeira vista, portanto, o que nos parece essencial como primeiro passo para uma verdadeira reforma do Judiciário seria a transformação do processo: em lugar do processo escrito, o processo oral, admitindo recurso só e apenas com relação a matéria de direito.

A propósito, vale relembrar:

  1. Nas eleições municipais de 1996, no Município de Linhares, terminada a apuração, foi declarado eleito o candidato “A”, que teria obtido a maioria dos votos. Imediatamente o candidato “B”, derrotado, requereu recontagem, alegando a ocorrência de fraude no pleito e nas juntas apuradoras.

Esse recurso levou cerca de dois anos tramitando, indo parar até no Tribunal Superior Eleitoral – órgão máximo da Justiça Eleitoral no País – onde finalmente ficou decidida a recontagem.

Acontece que na Justiça Eleitoral os recursos não têm efeito suspensivo. Em vista disso, logo após a proclamação dos eleitos, deu-se posse ao candidato “A”, que imediatamente assumiu a administração do Município.

Procedida a recontagem confirmou-se o resultado, e, finalmente, o Prefeito empossado passou a gozar de tranquilidade no exercício das funções que já vinha desempenhando.

  1. No último pleito para Governador do Estado houve impugnação, por parte do Ministério Público, às contas do candidato vitorioso. Isso não impediu a diplomação e posse daquele que havia sido eleito. Quando se deu o julgamento do recurso do Ministério Público, que acabou improvido, consolidou-se a investidura do Governador José Ignácio Ferreira.

Nesses dois casos vê-se como funciona a Justiça Eleitoral, onde pouquíssimos recursos são admissíveis, onde só há prazos curtíssimos, com decisões sumárias, e não suspendem eleições nem posses. Basta dizer que apesar da enxurrada de recursos comumente interpostos por partidos e candidatos, nunca deixou de se realizar uma eleição no dia previamente marcado.

  1. Nos Estados Unidos – todo mundo viu isso através da televisão – o famoso boxeador Mike Tysson, condenado a 5 anos de prisão, imediatamente após manifestada a decisão da Juiza, saiu da sala de julgamentos preso, para cumprir a pena, enquanto seus advogados vão impetrando recursos para as instâncias superiores.
  1. Aqui no nosso País há inúmeros réus, condenados a 10, 20 ou 30 anos de prisão que permanecem soltos, escandalizando a sociedade, enquanto dezenas de recursos (muitos deles meramente protelatórios) vão tramitando pelos diversos Tribunais. Como na maior parte das vezes trata-se de julgamentos pelo Juiz Criminal, pouco se vê e se fala a respeito (apenas os diretamente interessados). Quando, entretanto, a decisão é do Tribunal do Júri, em fatos rumorosos, leigos em geral ficam estarrecidos.

Vemos, através desses simples exemplos, que essa pranteada, reclamada e odiada morosidade – verdadeira chaga que infelicita e macula o Judiciário – só poderá ser extinta dando-se novos conceitos e novas definições ao Direito Processual. No sistema atual, na estrutura jurídica vigente, simplesmente não há solução.

Impõe-se, antes de mais nada, colocar-se a legislação brasileira em níveis compatíveis com as exigências de uma sociedade dinâmica e criadora, como a nossa, realizando um trabalho de verdadeira terraplanagem jurídica, escoimando-a definitivamente de leis materiais e processuais ultrapassadas, arcaicas e obsoletas.

Nosso intangível direito não é nada mais do que perspectivas, possibilidades e imputações. A experiência mostra que todo direito finalmente se aniquila em conseqüência de possibilidades perdidas e por falta de energia. A crítica às idéias processuais não é nada mais do que uma crítica das idéias políticas.

Vale, sem dúvida, tanto para os indivíduos como para o povo, que todo Direito e portanto seu Direito, no fundo nada mais é do que um resumo de possibilidades e acusações em luta, que valerão como direito.

O direito do povo, portanto, o chamado “direito individual” oriundo do liberalismo dos tempos modernos, transformou-se em direito processual. O direito, em sua expressão material, só pode florescer, viver e manifestar-se através do processo, e o processo só é verdadeiro quando aquecido sob as luzes do liberalismo, de concepções filosóficas igualitárias e que olhem para a sociedade como um todo, baseadas em idéias fundamentais adaptadas aos fenômenos atuais.

Por isso, para uma verdadeira reforma do judiciário não há necessidade de soluções desconhecidas, mágicas e misteriosas: como primeiro passo fundamental bastaria a adoção, em todos os ramos de Direito, do mesmo tipo de processo existente na Justiça Eleitoral.

Constantemente assistimos através da imprensa, palestras e pregações nas escolas, campanhas esclarecedoras, mostrando ao público os malefícios do fumo. Em todas as propagandas de cigarro a Lei obriga colocar-se a advertência: “fumar causa câncer e outras doenças pulmonares”. Enfim, tenta-se, por todos os meios e modos, mostrar ao público que fumar faz mal à saúde, sugerindo, portanto, que não se deve fumar.

O mesmo se aplica ao uso de armas, e aos fogos de artifício. O Governo procura, insistentemente, “desarmar a população”, como também impedir que as pessoas explodam foguetes e bombas em geral, para evitar tantos e tão graves acidentes que tem havido.

Qualquer pessoa não precisa ser muito inteligente para entender logo que, se houvesse mesmo o propósito de impedir o fumo, a utilização de armas e a explosão de fogos de artifício, o remédio mais pronto, eficaz e rápido seria fechar as fábricas de produtos tão prejudiciais e lesivos à sociedade.

Não há, no nosso País, muitas fábricas de cigarros; nem de armas de fogo; nem tampouco de fogos de artifício. Portanto, fechando essas fábricas, estar-se-ia, sem muita dificuldade e com pouco esforço, matando o mal pela raiz.

Acontece que a adoção de uma medida radical dessa natureza ocasionaria imensos problemas sociais e econômicos: o Governo deixaria de arrecadar milhões e milhões de reais referentes aos impostos recolhidos por essas atividades econômicas; milhares de pessoas perderiam seus empregos; o comércio que compra na fábrica e revende para o público, teria seu movimento muito diminuído; as empresas transportadoras em geral perderiam importantes clientes. Enfim, se desencadearia uma reação em cadeia, aumentando o desemprego e, por via de consequência, a pobreza.

Por isso é muito mais conveniente, mais simples e mais barato ficar-se na mera propaganda. Serve pelo menos como desencargo de consciência.

Essa série de raciocínios nos vem à memória quando vemos a campanha metódica e sistemática que se faz, através dos anos, acerca da necessidade de uma reforma do Judiciário.

Na época do regime militar, lá pelos idos de 1977, o Presidente Ernesto Geisel, não conseguindo ver aprovados seus projetos, decretou o recesso do Congresso Nacional para instituir, por decreto, a reforma do Judiciário, que, dizia, era inadiável. O Congresso foi reaberto, está funcionando até hoje, e não se fez reforma alguma.

Durante os debates da Constituição de 1988 houve inúmeras emendas e acalorados debates em torno da reforma do Judiciário. Tudo foi rejeitado e arquivado sumariamente. A suposta reforma restringiu-se à criação do Superior Tribunal de Justiça, ou seja, à instituição de mais uma instância, a quarta, como se três já não fossem mais do que suficientes.

O que não se diz, entretanto, é que uma verdadeira reforma do Judiciário importaria em mudanças estruturais na legislação processual, e, por via de consequência, na distribuição de Justiça na primeira instância, ou seja, no primeiro grau de jurisdição.

Essa reforma exigiria: mudança no processo, tornando-o mais oral e menos escrito; fim de muitas formalidades e de tantas citações e intimações, que enchem o processo de “mandados” e uma montoeira de carimbos; fim de tantos recursos e mais recursos; fim de tantos cartórios (que quando dão lucro, são privatizados, e quando dão prejuízo, são oficializados).

A máquina judiciária, como se vê, envolve, no País todo, milhões de pessoas, com a circulação de enorme quantidade de dinheiro. Isto sem se falar nos Advogados, que vivem exatamente em função desse formalismo e desse exagerado número de recursos e de tribunais.

Não se deve esquecer que em todo processo há um Advogado querendo que a ação ande, e outro desenvolvendo todos os esforços de sua inteligência e de sua cultura jurídica, para retardá-lo. Numa ação de despejo, por exemplo, o advogado do locador luta para o processo ser rápido e veloz; enquanto o advogado do locatário trabalha ferozmente para retardar a ação, a fim de que seu cliente fique o maior tempo possível no imóvel. E assim por diante.

Diante de tantos e tão relevantes obstáculos, compreende-se logo a razão por que tanto se fala em reforma do Judiciário, há tantos e tantos anos, e pouco, ou nada, é feito nesse sentido. Exatamente como acontece com o fumo, armas e fogos de artifício.

Todos aqueles que vêm acompanhando o noticiário da imprensa ultimamente, devem observar que muito se fala em “Poder Judiciário”, num sentido amplo e genérico.

Acontece que no nosso País não existe um Poder Judiciário estruturado uniformemente, sob comando único, obedecendo a direção centralizada. O que há, são inúmeras instituições autônomas, independentes e soberanas, que não dispõem de qualquer ligação entre si, nem tampouco subordinação.

Temos, antes de mais nada, as Justiças Estaduais. Cada Estado possui o seu Poder Judiciário próprio, com Tribunal de Justiça, Comarcas e inúmeros órgãos diretores: Corregedorias, diretorias dos foruns, tribunais de alçada, Câmaras, etc.

Os Tribunais de Justiça estaduais não estão vinculados, entre si, nem administrativa, nem jurisdicionalmente. Todos funcionam como compartimentos estanques. Cada qual com sua área de competência própria.

A Lei não permite sequer a transferência de um Juiz ou Desembargador de um Estado para outro. Assim, por exemplo, se um Juiz de Minas Gerais quiser vir para o Espírito Santo, ou vice-versa, terá que se submeter a concurso, e, se aprovado, iniciará a carreira como Juiz substituto, e aguardará remoções e promoções até conseguir sua Comarca ou Vara.

Aqui no nosso Estado, mesmo, tivemos o caso de um Desembargador aposentado no Rio de Janeiro que fêz carreira como qualquer iniciante na carreira de Magistrado: de substituto para primeira, de primeira para segunda, de segunda para terceira, até a entrância especial.

Mas, além disso, existem outras Justiças: Justiça Federal, Justiça Trabalhista, Justiça Eleitoral, Justiça Militar, e, finalmente, o Tribunal do Júri, que é apenas presidido por um Juiz togado, sendo, na realidade, uma Justiça Popular. Suas decisões muitas vezes absurdas e aberrantes, são jogadas na conta do Poder Judiciário. O Tribunal do Júri não pertence, entretanto, ao Poder Judiciário.

Essas Justiças não se comunicam. O que se nota são muitos conflitos de competência entre uma e outra, gerando atrasos e tumultos processuais: o processo se inicia na Justiça comum, e o advogado alega que a competência é da Justiça do Trabalho, ou da Justiça Federal, ou da Justiça Eleitoral; ou se inicia na Justiça Federal e o advogado alega que a competência é da Justiça comum, e assim por diante. Enquanto esse conflito não é decidido, passam-se muitas vezes anos e anos a fio.

O próprio Supremo Tribunal Federal, que se acha no ponto mais alto da pirâmide, não dispõe de qualquer poder de gerência e administração sobre todas as demais Justiças. Caber-lhe-á apenas e tão-somente examinar os casos que lhe sejam submetidos por via de recurso da parte que se sentir prejudicada. Aí, sim, sua decisão disporá de força imperativa.

Qualquer um que analisar essa imensa variedade de Justiças, observará que, muito embora discordantes e divergentes, apresentam um ponto em comum: com poucas e honrosas exceções, possúem, em geral, uma mentalidade reacionária e obstinadamente conservadora.

Comentaristas de renome, através de artigos publicados tanto na imprensa leiga como na especializada, têm acentuado os inúmeros avanços introduzidos pela Constituição de 1988 que foram mortos ou simplesmente ignorados pela Justiça. E, às ligeiras, podemos citar:

  1. “As taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito, não poderão ser superiores a doze por cento ao ano” (Art. 192, § 3º). A Justiça admitiu e reconheceu a constitucionalidade de juros muito superiores, na forma vigente atualmente.
  1. A Constituição estabeleceu a aposentadoria “por tempo de trabalho” (art. 202). A Justiça, em sua quase totalidade, exigia comprovação, por escrito, do tempo de serviço e de contribuição. Poucas foram as interpretações mais transigentes. Até que a Emenda Constitucional nº 20, de 15 de dezembro de 1998, veio fixar definitivamente o “tempo de contribuições”.

Como estes são dois pontos fundamentais, de relevantíssimo interesse público, não vemos necessidade de maiores comentários a respeito.

Sempre houve, contudo, uma única Justiça avançada, progressista, zelando, unanimemente, com entusiasmo, pela estrita observância à Lei, e, por conseguinte, pelos direitos dos seus jurisdicionados: a Justiça do Trabalho. E, por incrível que pareça, não se sabe se apesar disso ou por causa disso, quer-se acabar com ela.

Se formos nos deter um pouco na análise de nossa Ciência, verificaremos que todo o nosso Direito é, em geral, o mesmo Direito dos tempos dos romanos. Direito das Obrigações, direito das coisas, direito penal, direito da família, em todos os ramos ainda nos baseamos nas experiências, nos raciocínios e nas interpretações dos pretores e jurisconsultos da Roma Antiga.

Desde que Ulpiano, Modestino, Marciano, Colatino, Papiniano, Gaius e Paulus lançaram as sementes do “Corpus Iuris Civilis”, tudo que brotou de sua prodigiosa fertilidade intelectual continua vigorando até os dias atuais. E já se passaram quase 1.800 anos. Sem se falar na Lei das 12 Tábuas, editada no ano 450 antes da era cristã.

Agora, vale à pena ponderar-se um pouco. Antes dos romanos havia um tipo de Direito – pessoal, autoritário, embrutecido. Os gregos criaram o direito público, com a república e a participação do povo.

O direito romano representou o surgimento de novas concepções jurídicas, fortalecidas a seguir pelo direito germânico, e completadas, mais tarde, pelo direito canônico.

Foi um Direito criado para uma época, para uma fase histórica, para um determinado período da vida do homem, muito diferente do século em que vivemos.

Alguns lançam a culpa da morosidade da Justiça em cima do Judiciário. Mas já está na hora de se entender o problema em toda sua amplidão. Diz-se que as flechas da Justiça atravessam com facilidade os andrajos dos pobres, mas quebram-se no escudo de ouro dos ricos e poderosos. Muitos não compreendem que quem tem dinheiro, pode pagar a bons advogados, e os bons advogados sabem como utilizar todos os recursos da Lei – que são inesgotáveis, e às vezes alcançam tanto quanto a imaginação criadora de expedientes e manobras protelatórias tenha capacidade de engendrar e inventar nulidades – tudo rigorosamente dentro da lei.

Nosso Código de Processo Penal data de 1940, e o de Processo Civil, apesar de ser uma lei mais recente (1973), não trouxe nenhuma inovação importante, em comparação com o Código anterior.

É com esse ordenamento jurídico arcaico, anacrônico, inteiramente superado, que remonta a épocas e condições ético-sociais inteiramente diferentes das em que vivemos, que, contudo, ainda temos que distribuir Justiça.

Para acentuar a distonia, basta relembrar que somente dois institutos jurídicos funcionam adaptados aos novos tempos: o mandado de segurança e o habeas corpus. Têm, contudo, sua origem no direito anglo-saxônico. Não são produção romana. Diante das exigências da sociedade, e atendendo à provocação dos advogados, esses dois institutos têm aplicação cada vez mais intensa e extensa. Por que? Porque são remédios rápidos e eficazes. Substituem recursos, suspendem execuções, anulam ações, reabrem prazos, decretam o trancamento de ações, enfim, fazem o possível e o impossível, podendo até mesmo serem designados como “recursos dos que não têm recurso”.

O excesso de recursos e as ilimitadas preocupações em torno da livre defesa, vêm gerando essa morosidade espantosa, e matando o próprio direito.

O fato é que, naqueles longínquos tempos, a população da Itália era a mesma do Espírito Santo de hoje – dois milhões de habitantes; e em Roma vivia o mesmo número de pessoas que atualmente moram em Vitória – cerca de 400.000 almas. O Império Romano todo, que ia desde a Galiléia até a Península Ibérica, contava com 16 milhões de pessoas, de acordo com o recenseamento realizado por Otávio.

Ora, naturalmente o direito elaborado para uma sociedade tão reduzida, tão espalhada, vivendo em cidades de poucos habitantes, pode muito bem ser um direito meticuloso, detalhista, abedecendo a formalidades e rituais espaçados e descansados.

Deram-se transformações radicais, em todos os sentidos. Nosso Código Civil, que data de 1916, quando éramos 25 milhões, não pode dispor da agilidade necessária para acudir aos reclamos de uma massa de 160 milhões de seres ansiosos e perplexos.

Durante a elaboração da atual Constituição os parlamentares já se mostravam nitidamente preocupados com a necessidade de uma profunda reforma do Judiciário. Foram apresentadas centenas de emendas em torno do assunto.

Dentre elas, vale destacar uma, de autoria do Senador Meira Filho, que pretendia mais ou menos o seguinte:

  1. Criava o Poder Judiciário nacional. Acabava, por conseguinte, com a multiplicidade de Justiças autônomas e independentes, existente atualmente, centralizando todos os órgãos da Justiça sob o comando jurisdicional e administrativo do Supremo Tribunal Federal.
  1. Criava o Conselho Superior de Justiça, composto de sete membros, com mandato de sete anos, sem possibilidade de recondução.
  1. Determinava que os membros do Conselho fossem eleitos: um pelos membros do Supremo Tribunal Federal, um pelo Conselho Superior do Ministério Público, um pelo Conselho Federal da OAB, dois pelo Senado Federal e dois pela Câmara dos Deputados.
  1. Esse Conselho teria a competência para efetuar as nomeações, designações, remoções, promoções e medidas disciplinares relativas aos magistrados e aos membros do Ministério Público.
  1. Dispunha que os membros do Conselho Superior da Justiça deveriam ter as condições exigíveis para ser Senador da República e pelo menos quinze anos de prática na magistratura, no Ministério Público ou no magistério jurídico.
  1. Federalizava a Justiça, transferindo para a União todos os magistrados e membros do Ministério Público estaduais.

Essa proposta, com seus aspectos verdadeiramente revolucionários, apresentava, sem dúvida alguma, pontos relevantíssimos.

Se não, vejamos:

  1. Acabava com os intermináveis e incontáveis “conflitos de competência” entre uma Justiça e outra, que são, inegavelmente, uma das maiores causas da lentidão dos processos.
  1. Criava condições para o funcionamento da Justiça, porque já está mais do que provado que os Estados não dispõem de recursos para sustentarem a máquina judiciária. Além de vencimentos ridículos e insignificantes, incompatíveis com a dignidade da função, em grande número de Estados os pagamentos acham-se atrasadíssimos. Há inúmeras Comarcas do interior onde os foruns estão caindo aos pedaços. Não há dinheiro mem para compra de mobiliário, nem para máquinas, nem ao menos para material de expediente ou de consumo permanente.
  1. Estabelecia regras uniformes e seguras para a realização dos concursos de ingresso, que ficariam a cargo desse “Conselho”, sem qualquer ingerência das autoridades locais, o que seria uma garantia de isenção, moralidade e segurança.
  1. Criava a figura do Corregedor Geral da Justiça, que poderia se deslocar rapida e facilmente para qualquer Estado a fim de apurar queixas, denúncias, e sanar imediatamente possíveis irregularidades.
  1. Reservando o duplo grau de jurisdição, ou seja, permitindo que uma decisão seja reapreciada por um órgão superior, suprimia a possibilidade de recursos para instâncias superiores, que só deveriam se pronunciar sobre assuntos relevantes ou inconstitucionalidades.

Essas propostas e sugestões, por serem tão apropriadas e corretas em suas linhas gerais, não poderiam ser aprovadas, nem sequer desenvolvidas. Foram simplesmente arquivadas. A Constituição-cidadã ignorou-as.

Agora, volta-se a falar em reforma do Judiciário. Dentre as emendas mais importantes apresentadas, colhemos uma que muda o nome do Superior Tribunal de Justiça para Tribunal Superior de Justiça; outra que acaba com os classistas da Justiça do Trabalho; uma que acaba com o quinto constitucional e outra que aumenta a participação dos Advogados e membros do Ministério Público para um terço dos Tribunais; outra que suprime Tribunais regionais; outra que estende o limite da aposentadoria compulsória para os 75 anos, etc., etc.

Isso nos faz lembrar as palavras de Disraeli, quando proclamava que “o negócio é reformar, reformar sempre, para que as coisas continuem as mesmas”. E Anatole France quando dizia que “o dever augusto da Justiça é garantir a cada um o que lhe cabe: ao rico sua riqueza e ao pobre a sua pobreza”.