- Pedro Valls Feu Rosa - http://pedrovallsfeurosa.com.br -

Da contra-reforma

Acabada a fase do regime militar, soprados os ventos da liberdade e restabelecida a democracia no País em 1983, logo em seguida o Congresso Nacional transformou-se em Assembléia Nacional Constituinte, para a elaboração de uma nova Constituição, que, após longos e prolongados debates, foi promulgada no dia 5 de outubro de 1988.

Efetivamente, a carta de 1988 surgiu num momento de grande euforia. Acabou com tudo aquilo que era chamado “entulho autoritário”. Na hora de sua assinatura bimbalharam os sinos de todas as Igrejas do País. A Nação, entusiasmada, saudava o surgimento de uma nova era. A nova Constituição, além de suprimir todos os resquícios do autoritarismo, tinha um cunho nitidamente nacionalista, e, ainda por cima, introduzia novos direitos para os cidadãos, razão por que, no momento de sua promulgação, o saudoso deputado Ulisses Guimarães designou-a solenemente como “Constituição-cidadã”.

Mas, eis que, nem bem havia entrado em vigor, começaram a aparecer emendas tentando alterá-la: umas queriam supressão de textos, outras a inclusão, e, muitas outras, mera substituição.

Nesses últimos anos, então, desabou sobre o País uma tempestade reformista. Apregoava-se insistentemente por todos os veículos de comunicação a necessidade inadiável, indispensável, imperiosa, improcrastinável, de reformas constitucionais, para “modernizar” o Estado.

No dorso de tantas reformas, vejamos as mais importantes:

  1. Antes da Constituição de 1988 havia funcionários públicos regidos pelo Estatuto dos Funcionários Públicos e os que tinham suas atividades disciplinadas pela Consolidação das Leis do Trabalhos, ou seja: estatutários e celetistas.

Sob o pálio da nova Constituição (art. 39), acabaram-se os celetistas, e criou-se o chamado “Regime Jurídico Único”. Agora, na famosa “reforma administrativa”, acaba-se com o regime jurídico único, sob a alegação de que “engessa a máquina pública”.

  1. Pela reforma atual, qualquer aumento de salário pago pela União, Estados e Municípios só poderá ser concedido por meio de lei. Ou seja: retorna-se ao regime anterior à Constituição de 1988, que criou a autonomia financeira do Legislativo e do Judiciário. Os dois Poderes passarão, novamente, a ir periodicamente de pires na mão pedir aumentos ao Chefe do Executivo. Com isso aumenta o poder de barganha dos Governadores e se enfraquece a independência dos outros dois Poderes.
  1. Concede ao Governo a possibilidade de demitir servidores por insuficiência de desempenho. Hoje, o servidor estável só pode ser demitido por meio de processo administrativo para apuração de falta grave ou desídia. Esta era uma garantia constitucional oferecida pela Constituição de 88, bem como pela de 1946: só foi retirada pelo AI-5, porque a definição do que é “insuficiência de desempenho” está sujeita a critérios eminentemente subjetivos, dependendo, o mais das vezes, de conveniência político-partidária.
  1. A Constituição-cidadã prescrevia taxativamente que “os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei” (art. 37, I). Só brasileiros podiam ser funcionários públicos. Agora o acesso de estrangeiros ao serviço público passa a ser permitido. Numa época em que grassa o desemprego, vamos alterar a Constituição para abrir chance a estrangeiros (contra os quais nada temos – apenas entendemos que precisamos primeiro resolver o problema dos nacionais).
  1. A Constituição vedava “a participação direta ou indireta de empresas ou capitais estrangeiros na assistência à saúde no País” (art. 199, § 3º). Isso já não existe mais.

Além disso, há inúmeras outras novidades fundamentais implantadas pela Constituição de 1988 que foram sumariamente canceladas, como se vê pela criação da prisão temporária (ou seja, prisão de suspeitos, sem inquérito nem processo penal), prisão por dívidas (ampliação do conceito de prisão civil para abranger, também, no conceito de depositário infiel, a alienação fiduciária), e outras mais.

Como se vê, por incrível que pareça, sob o rótulo de “reformas”, tudo parece indicar que o que existe, na realidade, é uma “contra-reforma”, através da qual é demolida, pedra sobre pedra, toda a obra reformista construída, criada e gerada pela Constituição de 1988.