- Pedro Valls Feu Rosa - http://pedrovallsfeurosa.com.br -

Da justiça

Há bem pouco tempo passou pelo Tribunal caso muito interessante. O cidadão comprou um carro financiado. Pagou determinada quantia à vista e ficou de pagar o restante em 24 prestações. Até aí nada de mais. Trata-se de operação normal, realizada centenas de vezes por dia. Acontece que, desgraçadamente, quando já havia pago 3 prestações, ao se preparar para pagar a quarta prestação, seu carro foi furtado, quando se encontrava estacionado na rua.

Mesmo sem o carro, continuou pagando pontualmente, ainda, mais umas 3 ou 4 prestações. Eis que, premido pelas dificuldades, acabou por atrasar seus compromissos, dentre os quais o do carro.

A financeira bateu às portas da Justiça. Pediu que fosse fixado um prazo para que o inadimplente liquidasse seus compromissos, sob pena de devolver o carro, do qual, mediante o contrato assinado por ocasião do financiamento, seria mero “depositário”.

O indivíduo não pagou, porque, desempregado, estava sem dinheiro. Também não podia devolver o carro, porque havia sido furtado.

O Juiz, a pedido da financeira, expediu mandado determinando que o cidadão devolvesse o carro, sob pena de prisão como “depositário infiel”. Como a Polícia nunca encontrou o carro furtado, o inadimplente foi parar na cadeia.

Os Tribunais, nessas circunstâncias, vêm concedendo habeas corpus, decidindo que, tendo sido furtado o veículo, não se pode exigir do chamado “depositário” sua devolução. Mas, enquanto o cidadão constitui Advogado, aumentando, por conseguinte, suas despesas, e recorre para o Tribunal, fica mofando na cadeia, ao lado de criminosos da pior espécie.

Muitas vezes, como sua conta aumenta extraordinariamente, porque vai ter que pagar de imediato todas as prestações – vencidas e vincendas – de uma só vez, mais juros, mais multa, e mais honorários de seu advogado e do advogado da financeira, passa a vender tudo que possui, para poder sair da cadeia: vende geladeira, televisão, discos e até, muitas vezes, sua própria casa. Doutras vezes toda a família se junta, e pais, sogros, irmãos, tios, sobrinhos, etc., vendendo por pouco mais ou nada tudo que possam converter em dinheiro a curto prazo, para tirarem o parente do “sufoco”.

Essa situação surrealista, que remonta aos tempos dos romanos, até bem pouco tempo era algo de inacreditável, ou pelo menos excepcional e extraordinário, porque a prisão por dívidas há mais de cem anos foi suprimida do regime jurídico de todos os povos civilizados do mundo.

O que se nota, surpreendentemente, é que a prisão por dívidas retornou, no dorso de tão importantes reformas introduzidas em nossa legislação.

Numa época em que tanto se fala na necessidade de humanização das nossas prisões e se discute acerca da necessidade de serem aplicadas as chamadas “penas alternativas”, vemos trancados na cadeia, no meio de criminosos da pior espécie, pessoas de bem e de passado inatacável que, muitas vezes empolgadas por fabulosas campanhas publicitárias, assumiram obrigações além de suas posses, ou, por outras circunstâncias – perda de emprego, doença e outros imprevistos – não puderam honrar seus compromissos financeiros.

Por isso, foi com muita satisfação que encontramos, em recentes decisões dos Tribunais Superiores, interpretação que visa, se não a resolver, pelo menos a atenuar esse quadro aflitivo.

Assim, temos:

  1. O inadimplente na obrigação de pagar o débito contraído em contrato com cláusula de alienação fiduciária não pode mais ser considerado depositário infiel e, em decorrência disso, sofrer prisão civil. “Habeas Corpus” conhecido; pedido deferido (STJ – HC-5598-DF – Rel. Min. Edson Vidigal – DJU-29/09/97 – pág. 48231).
  1. Não se considera o devedor alienante depositário infiel de bem alienado fiduciariamente, se este lhe é posteriormente roubado, descabendo, nessa hipótese, sua prisão civil (STF-RTJ 129/781).

Essas decisões do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, extremamente lúcidas, humanas e, sobretudo justas, naturalmente contrariam poderosos interesses econômicos. E talvez seja exatamente por posições corajosas dessa espécie que a Justiça vem sendo alvo de críticas e ataques incessantes.