- Pedro Valls Feu Rosa - http://pedrovallsfeurosa.com.br -

Da prisão civil

Durante muitos séculos, desde os tempos dos romanos até início do século 20, além da prisão criminal havia, também, a prisão civil. Assim, o cidadão que não pagasse uma duplicata, nota promissória ou mesmo o aluguel, era sumariamente colocado na cadeia, onde ficava recolhido até liquidação do seu débito.

Charles Dickens, em sua maravilhosa obra literária relata com detalhes as humilhações, desespero e sofrimentos a que se sujeitavam os devedores e inadimplentes contratuais, naquela época.

Isto nos vem à memória quando vemos o que se passa atualmente no nosso País, numa época em que tanto se fala em democracia, direitos da cidadania, liberdade e justiça social.

Ainda há pouco tempo a imprensa noticiou o caso dum humilde operário que teve sua prisão civil decretada porque, devido à terrível crise econômico-financeira por que estamos atravessando, deixou de pagar a pensão alimentícia a que estava obrigado. Recolhido à prisão no meio de criminosos da pior espécie, lá foi assassinado. Entrou vivo e saiu morto. Nem por isso a viúva recebeu o dinheiro a que tinha direito.

Da mesma forma, têm chegado aos Tribunais inúmeros pedidos de habeas corpus para relaxar prisão de devedores. Mas aí não se trata apenas de hipossuficientes e pobretões: funcionários públicos e integrantes da classe média, pequenos comerciantes e empresários em geral, não conseguindo aguentar os juros exorbitantes que lhes são impostos, acabam na cadeia.

Muitas vezes o cidadão conpra um bem, digamos, por dez mil reais, para pagar a prestação. Paga seis mil reais. Quando atrasa, a instituição financeira cobra taxa, juros, custas judiciais, honorários de advogado, e a dívida de repente sobe para quarenta ou cinquenta mil reais. Não aguentando, o credor (Banco ou órgão financiador), que havia feito o devedor assinar um desses contratos leoninos, em que há fiador, avalista, e, ainda por cima a figura do “depositário”, pede a prisão de sua vítima.

Temos observado na Justiça vários casos de devedores que compraram um carro, digamos, por 20 mil reais, pagaram 15 mil e passaram a dever 50 mil reais. No final, como a situação atinge níveis insuportáveis, acabam perdendo o carro, e muitas vezes ainda indo parar na prisão.

Neste final de século 20, na soleira do século 21, estamos, sem dúvida alguma, retornando aos tempos dos romanos.

O mais curioso é que cansamos de ouvir os clamores de entidades das mais respeitáveis na sociedade, que pedem a humanização das prisões, melhor tratamento para os encarcerados, definem as cadeias como “universidades do crime”, pedem e exigem a libertação de homicidas, latrocidas, estupradores (muitos deles multi-reincidentes), mas deixam de lado, entretanto, o aspecto mais triste e doloroso da questão: esquecem-se de centenas e milhares de pessoas, por esse Brasil afora, que constantemente são recolhidas aos cubículos de nossas prisões apenas porque não suportaram a exagerada carga da agiotagem oficializada. São indivíduos, em sua maior parte, de comportamento ilibado, de passado irretocável – nunca roubaram, nunca mataram, nunca estupraram ninguém. Apenas foram vítimas de planos econômicos impiedosos e cruéis, alterados e modificados a todo instante.

Nesta fase da vida brasileira, em que tanto se clama e proclama a necessidade inadiável, impostergável, imperiosa, impreterível e imprescindível de reformas e mais reformas, quer nos parecer que seria um bom tema a ser incluído em pauta: o do fim da prisão civil, que, ao lado da prisão temporária (que vem ocasionando a prisão de simples suspeitos e inocentes às toneladas), têm servido de instrumento para injustiças terríveis.

Tudo parece indicar que uma das mais importantes reformas – pelo menos para a vida dos cidadãos – foi o retorno ao regime da Constituição de 1824. Com a diferença, apenas, que outrora quem colocava na cadeia os devedores eram os policiais, e, no máximo, Delegados, enquanto que agora são os Juízes. Muitos deles, na prática, vêm se transformando, desgraçadamente, em meros agentes cobradores: “Ou paga ou vai para a cadeia”. “Só sai da cadeia se pagar”.

Este seria, aliás, um bom tema, senão para os legisladores, pelo menos para a chamada “Justiça alternativa”.