- Pedro Valls Feu Rosa - http://pedrovallsfeurosa.com.br -

Dos direitos adquiridos

A vida em sociedade é baseada, sem dúvida alguma, em contratos. Desde as mais simples até às mais sérias e graves relações, está sempre presente um contrato entre duas partes.

Se o cidadão compra um imóvel, estabelece-se um vinculo contratual entre o comprador e o vendedor. Se uma pessoa vai viajar num ônibus, a empresa assume o compromisso de transportar o passageiro, incólume, ao destino. E o passageiro assume o compromisso de pagar a passagem.

Quando um indivíduo entra numa lanchonete para comer um simples sanduíche ou tomar um refrigerante, forma-se na mesma hora um contrato: o freguês obriga-se a pagar a conta, e o comerciante, por sua vez, fica com o compromisso de fornecer a mercadoria boa, saudável, apta para servir de alimento.

A importância dos contratos nas relações sociais é tão grande que os romanos já diziam, naqueles longínquos tempos, que “os contratos têm que ser obedecidos” (pacta sunt servanda).

Desde aquela época e durante muitos séculos reis e imperadores, que representavam o Estado, só tinham “súditos” e só reconheciam a obrigatoriedade dos contratos celebrados entre os “súditos”. O Estado, todo-poderoso, estava colocado acima da sociedade, como num Olimpo. Não havia direitos do povo frente ao Estado.

Só após a Revolução Francesa de 1789 deu-se a transformação: em vez de súditos, os membros do Estado tornaram-se “cidadãos”. Esses cidadãos firmavam contratos entre si, mas ficou reconhecido também, a partir dessa época, que eles possuiam direitos frente ao Estado, ou seja, o cidadão deixou de ser mero pagador de imposto e escravizado pelo Estado, para se tornar portador de direitos para com o Estado e o Estado para com ele.

Foi a partir daí que surgiram os chamados “direitos adquiridos”. O Estado a garantir direitos e obrigações surgidos nas relações dos cidadãos entre si, mas também do Estado para com os cidadãos.

Foi no curso dessa evolução histórica que se inscreveu em nossa Constituição Federal, dentre as demais garantias oferecidas ao povo brasileiro, que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada” (art. 5º, XXXVI).

Isso, entretanto, que à primeira vista é tão simples, tão natural e tão incontroverso, apareceu apenas após longos séculos de guerras, revoltas, lutas e revoluções, em que o povo não admitia mais viver inseguro e intranquilo, sujeito permanentemente às oscilações do modo de conduta dos governos.

Na alternação dos chefes de Estado, de acordo com as tendências de seus temperamentos e de suas concepções políticas e filosóficas, ora eram dados e reconhecidos direitos, ora cancelados e revogados sumariamente.

Esse dispositivo, hoje admitido pacificamente por todos os povos civilizados do mundo, teve entretanto, uma longa caminhada na história da humanidade. Reis e imperadores alteravam, por puro arbítro, toda e qualquer situação jurídica, estatal ou extra-estatal, mesmo que violassem direitos constituídos há anos.

O instituto dos direitos adquiridos não caiu dos céus, como dádiva divina. Custou milhões de litros de sangue derramados em lutas seculares, registradas no curso da história de todas as nações. É uma conquista da civilização, fruto dum lento processo multissecular.

A Revolução Francesa, de 1789, dinamitando as estruturas do mundo antigo, impôs o reconhecimento, na Europa, e a partir daí no mundo todo, que o Estado não deve e não pode – em virtude até mesmo de um “direito natural” – intervir em relações formadas e consolidadas, dos cidadãos entre si e entre os cidadãos e o Estado.

Essa intangibilidade dos direitos adquiridos é, antes de tudo, essencial para a paz social. A paz social exige segurança jurídica.

Efetivamente, o ato jurídico não atinge apenas o cidadão, mas repercute além de sua própria pessoa, e até mesmo além de sua própria vida.

Se não vejamos. Quando a Lei assegura a aposentadoria e demais direitos previdenciários a uma pessoa, esse benefício estende-se por toda sua vida, mas garante, também, sua família e seus descendentes. Mesmo eventuais filhos que nasçam após a sua morte, estarão também garantidos.

Quando o cidadão adquire uma casa ou uma propriedade imóvel qualquer, esse patrimônio integra-se à sua personalidade: gera-lhe crédito, posição social, respeitabilidade. Dá-lhe segurança a firmeza, porque sabe que numa hora de doença, de “aperto” ou necessidade, poderá dispor desse patrimônio, que não é nada mais nada menos do que resultado de seu trabalho e de sua luta, representando privação de luxo e de prazeres, visando ao futuro. Se morrer, seus herdeiros usufruirão dessa poupança.

Ao passar num concurso e assumir um cargo público, o indivíduo adquire “estabilidade”. Essa estabilidade dá-lhe tranquilidade material e espiritual. Confia e acredita no Estado. Tem como certa a garantia que lhe foi oferecida pelas Leis e pela própria Constituição. Baseado nisso, o indivíduo assume compromissos a curto prazo; coloca seus filhos no colégio; tranquiliza toda a família.

Resumindo, pode-se dizer que o direito adquirido representa a suprema garantia da ordem jurídica e até mesmo da existência de um Estado. Não se pode falar em ordem jurídica e muito menos em Estado constitucional onde não exista o respeito sagrado ao direito adquirido.

Desrespeitados pelo Estado, ou não reconhecidos pelo Estado os direitos adquiridos, nasce a insegurança, o desrespeito, a anarquia, e daí o próprio caos.

É diante dessa série de raciocínios que vemos com grande apreensão o quadro que se desenha nesse País, quando leigos e jejunos de toda espécie falam abertamente, com a maior sem-cerimônia, que não existem direitos adquiridos.

O instituto dos direitos adquiridos é tão importante para as relações sociais e manutenção de um Estado (não apenas do Estado democrático e social de direito, mas de qualquer Estado) que até mesmo as revoluções, terminado ou suspenso o seu processo de violências, tratam logo de se institucionalizar, para captarem a confianção popular e criarem “uma nova ordem”.

Já dizia Rui Barbosa que “não existem direitos adquiridos sem a escora da lei, e fora da lei não há salvação: tudo é desordem”, pois a caracteristica da lei “está no amparar a fraqueza contra a força, a minoria contra a maioria, o direito contra o interesse, o princípio contra a ocasião”.

Isso nos faz lembrar as célebres palavras de Luiz XIV, apologista dos regimes autoritários, quando dizia que, “depois de mim o dilúvio”, pois seu Reinado caracterizou-se pelo respeito absoluto aos contratos, na época do liberalismo econômico, que desencadeou extraordinário progresso à França. E ele compreendia muito bem que, abertas essas comportas, só se podia prever mesmo era o dilúvio.