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Justiça terrena

A crença numa outra vida foi constatada junto ao homem primitivo como junto aos antepassados quaternários. Todas as religiões têm ensinado: o homem deve ser recompensado ou punido num outro mundo, segundo ele tenha sido aqui justo ou injusto; o inferno está reservado aos maus (Manu, XII, 16), os bons irão para o céu, para o paraíso (Vendidad-Sadé, 7).

“O homem nasce só, morre só, recebe só a recompensa de suas boas ações, e só a punição de suas maldades. Seu pai, sua mãe, seu filho, sua mulher e seus pais não estão destinados a acompanhá-lo em sua passagem para o outro mundo; só a virtude lhe restará… Que ele aumente, então, sem cessar, pouco a pouco, sua virtude, a fim de não ir sozinho para o outro mundo” (Leis de Manu, IV, 238). O inferno é um lugar de trevas, o céu é um lugar de luz, onde o homem virtuoso será revestido “duma forma divina” (243).

Junto aos antigos chineses, indus, persas, gregos, há a mesma identidade entre a justiça, a virtude e a retidão do coração, da vontade. “Saraswati, que inspira aqueles que amam a verdade, que instrui o homem cujo espírito é reto, aceitou nosso sacrifício” (Rig-Veda). “Os espíritos não são favoráveis senão àqueles que fazem as cerimônias com um coração reto e sincero” (Chou-King). “Criador dos seres dotados de corpo, purificador, qual é a quinta coisa, que é a mais desagradável da terra?” Ahura-Mazda respondeu: “É, ó santo Zaratustra, aquela em que a mulher ou o filho de um homem santo se distancia do caminho reto” (Vendidad-Sadé). Em Confucio e Mencius, como mais tarde junto a Hesíodo e os Bárbaros, a justiça é sempre a retidão, o bem é o caminho reto, o mal, a via oblíqua.

“O filósofo dizia que é deplorável que a vida reta não seja seguida… A perseverança na vida reta, igualmente distanciada dos extremos, é difícil de conservar… O homem duma virtude superior se aplica em seguir e em percorrer inteiramente a via reta”(Confucio).

Sabe-se que o motivo, a intenção, fazem a moralidade de nossas ações. Um ato útil a nossos semelhantes não se torna bom, moral, a não ser quando executado sem preocupação pessoal, para obedecer a um dever.

Confúcio se explica, nesse ponto, como Kant; o capítulo VI tem por objeto o dever de tornar suas intenções puras e sinceras. O capítulo VII explica por que a ação de se corrigir a si mesmo de todas as paixões viciosas consiste na obrigação de dar com retidão e renunciar à fortuna e aos homens se não se pode obtê-las por caminhos honestos e retos. Mencius explica também a idéia do bem pela imagem da via reta: “Se vós dais ordens que não sejam conforme a via reta, não devem ser executadas por vossa mulher e seus filhos”. “Evitai o perigo, ó reis, diz também Hesíodo… Abandonai essas vias oblíquas da iniquidade”.

Junto aos bárbaros, a idéia de justiça permanece ligada, como hoje, à idéia de retidão, de caminho reto. No título de designação dum conto, estava dito: “Queremos que aqueles que aqui habitam, Francos, Romanos, Burgões, vivam sob teu governo, e que tu os conduzas nas vias retas”.

Os povos primitivos acreditavam que a faculdade de conceber a justiça e praticá-la distinguia o homem dos animais, que não possuem a noção do bem e do mal, e não sabem conformar seus atos à lei moral. “As feras, diziam os antigos egípcios, desprovidas de razão, vivem às cegas, boas ou más, por instinto ou por aventura, não por regra certa; sua alma, fixada na matéria, não vê nada fora dela. O homem tem mais que elas, a inteligência, cujas direções o mantêm no caminho correto e o fazem aprender a fazer a distinção entre o bem e o mal”.

A mesma idéia foi exprimida por Hesíodo: “O filho de Saturno, diz, permite aos monstros do mar, às feras selvagens, às aves de rapina de se devorarem uns aos outros; eles não têm justiça. mas aos homens deu a justiça, este dom inestimável”. “O augusto Chang-Ti deu a razão natural ao homem”, diz também o mais antigo livro chinês. Esta idéia profunda de que a razão não foi dada senão aos homens, que foi recusada aos animais, é aquela sobre a qual os filósofos espiritualistas insistem mais atualmente para distinguir o homem dos animais. “A noção abstrata do bem e do mal moral, diz Rousseau, se reencontra em todos os grupos de homens. Nada pode fazer supor que ela exista junto aos animais. Ela constitui, portanto, uma primeira característica do gênero humano”.

Não há razão, também para admirar esta concepção da alma humana, feita à imagem da Divindade, “faísca divina”, emanação da alma suprema, faísca emanada da alma suprema, como é designada nas “Leis de Manu”, no “Vendidad-Sadé. Se reencontrará mais tarde essa espressão em Platão e em Sêneca: “Eu quero saber – diz Sócrates – se sou um monstro mais conplicado que Tifon e mais furioso, ou um animal mais doce e mais simples e a que a natureza fêz como parte duma faísca da divina sabedoria”. “Então, diz Sêneca, esta alma realizada, chegada a seu mais alto ponto, não tem mais acima dela senão a inteligência divina, da qual uma parcela é descendente até em sua carcaça mortal”.