- Pedro Valls Feu Rosa - http://pedrovallsfeurosa.com.br -

O absurdo julgamento dos mortos

Joseph K. da Silva morreu. Pobre Joseph: morreu na cadeia, vítima de um ataque cardíaco. Triste destino!

O Diretor da Penitenciária, ao enviar a comunicação da morte de Joseph para a Justiça, suspirou fundo e exclamou: “que descanse em paz”. Triste ilusão. Tão cedo o infeliz Joseph poderia “descansar em paz”.

No Tribunal de Justiça, o Desembargador encarregado do processo dele recebeu a informação da morte. Qualquer pessoa dotada de um mínimo de racionalidade diria: “com a morte do réu, basta arquivar imediatamente o processo”. Nada mais errado.

Nossas leis não permitem isso. Quem arquivar sumariamente um processo “só porque o réu morreu” poderá ser até processado.

E foi por isso que encaminhou-se o processo para um Procurador de Justiça, no Ministério Público. Este, então, fez um Parecer opinando pelo arquivamento do processo, dada a morte do réu.

Com o Parecer o processo voltou para o Desembargador encarregado, no Tribunal de Justiça. Este, depois de fazer um minucioso relatório das ocorrências, pediu dia para julgamento. É isso mesmo: pediu dia para julgar um morto!

O nome do falecido Joseph foi, então, parar em uma pauta de julgamentos publicada no Diário da Justiça (o qual infelizmente não circula pelas paragens celestiais).

Eis que chegou o dia do julgamento do falecido Joseph! O presidente da Câmara Criminal anunciou o processo dele. E aí uma funcionária, em voz alta, indagou: “Joseph K. da Silva está presente?” (chama-se a isto “pregão”). Ele deve ter até tremido na tumba, ouvindo seu nome ser pronunciado em ambiente tão severo – mas acabou não aparecendo.

Após o falecido Joseph ter sido chamado, o Desembargador encarregado leu um relatório, descrevendo o que houve no processo. Em seguida ele leu sua decisão, concluindo pelo arquivamento do processo. Aí o presidente da Câmara Criminal colheu os votos dos demais Desembargadores. Um a um, eles votaram. Isto tudo foi registrado por diversas taquígrafas.

Redigiu-se, então, uma súmula de julgamento. Esta súmula foi publicada no Diário da Justiça – que infelizmente não é lido pelos mortos.

O processo voltou ao Desembargador encarregado. Este preparou um “acórdão”, documento que servirá de referência para outros julgamentos – deve ser importante que as gerações futuras saibam que processos de réus mortos devem ser arquivados.

Este “acórdão” também foi públicado no Diário da Justiça – que, repito, infelizmente não circula no “além”.

Só então, finalmente, o processo foi arquivado e Joseph pôde “descansar em paz”.

Parece brincadeira, mas tudo isto envolveu 76 funcionários, 1 Procurador de Justiça, 3 Desembargadores, 3 publicações no Diário da Justiça, 34 assinaturas, 12 remessas e recibos e até 4 carros para transporte do processo do falecido.

Diante deste absurdo, aquele processo confuso narrado por Franz Kafka em seu famoso livro já passa a não ser tão confuso assim! Kafka foi modesto!

Este quadro não é exceção – é rotineiro! Eu mesmo já participei de incontáveis julgamentos de mortos, sempre imaginando a confusão que vai dar se algum dia um deles resolver aparecer lá na sala de sessões…

Diante deste pequeno exemplo, fico a pensar em um coitado que esteve preso durante três anos e meio por tentativa de furto de uma bicicleta – o processo dele não andava porque “a Justiça estava sobrecarregada”. Detalhe: ele somente foi solto graças a um mutirão!

Fico a pensar, enfim, no quanto sofrem os vivos com a lentidão de um sistema obrigado a julgar até os mortos. E concluo que talvez, antes de modernizarmos a Justiça, devêssemos modernizar esta mentalidade atrasada, burocrática e cartorial que há 500 anos realiza o “milagre” de levar a pobreza aos filhos de um país tão rico.

Até lá, seja símbolo das nossas leis o “pregão dos mortos”, augusto na Justiça Divina, mas ridículo na terrena.