- Pedro Valls Feu Rosa - http://pedrovallsfeurosa.com.br -

Teoria e prática

Logo após a queda da ditadura getulista, em 1945, iniciou-se um grande movimento nacional em prol da convocação de uma constituinte, que viria criar um estatuto jurídico consentâneo com o momento histórico por que atravessávamos.

Naquela época havia nos bondes, nos muros e nas paredes em geral, farta publicidade do “Vinho Reconstituinte Silva Araujo”, um produto muito popular, então.

A esse respeito, uma revista humorística denominada “Careta” – que já não existe mais, infelizmente – registrou que um repórter, ao passar diante de grande massa popular que gritava freneticamente a palavra “constituinte”, perguntou a um cidadão o que ele pretendia. Recebeu como resposta que estava tentando ver se arranjava, naquele comício de propaganda do remédio, pelo menos uma amostra grátis do “Vinho Reconstituinte”.

A mesma revista mencionou que quando a multidão bradava “Constituinte”, “Constituição”, o curioso jornalista resolveu indagar a um dos cidadãos mais entusiasmados qual a diferença que ele achava entre constituinte e constituição, tendo ouvido, como esclarecimento, uma outra pergunta: “Não são marido e mulher? A Constituição não é a esposa do constituinte?”.(Jornal A Tribuna-27/06/99)

Esse fato verídico, infelizmente, ainda nos serve de importante lição para os dias presentes, pois, enquanto as elites pensantes, inteiramente alienadas da realidade brasileira, discutem e debatem sobre emendas constitucionais, parlamentarismo, voto distrital e reforma eleitoral, o povo, sofrido e sacrificado, pensa unicamente na melhoria de suas condições de vida, lutando para conseguir os medicamentos e alimentos de que necessita.

Este é o grande problema que sempre tem enfrentado nosso País: o divórcio de objetivos entre as elites e a massa.

As camadas intelectuais, abeberando-se sofregamente nos livros e ensinamentos dos sábios doutores europeus e norte-americanos, insistem em importar teses e ideologias que, logo que podem, transformam em leis, decretos e regulamentos.

Como é muito mais fácil copiar do que criar, mergulham pela filosofia grega e nos notáveis padrões de outros povos, que, no entanto, têm sua civilização caldeada em guerras, revoluções e experiências históricas muito diferentes das nossas, trazendo-nos exemplos e inspirações inadaptáveis aos nossos costumes.

Por outro lado, a grande maioria da nação, constituída de analfabetos, pobres, pernibambos e subnutridos de toda espécie, vive, pode-se dizer, num mundo completamente diferente, pensando apenas em sair das trevas da miséria, do pauperismo e da fome.

Veja-se, por exemplo, o que se passa com os direitos trabalhistas que, desde os tempos de Getúlio Vargas têm se ampliado e aperfeiçoado em nossa legislação, chegando ao ápice na Constituição de 1988, atualmente em vigor. Os artigos 6 a 11, com mais de 50 incisos, parágrafos e alíneas, concedem inúmeros direitos ao trabalhador brasileiro, colocando-nos lado a lado, nesse particular, com as legislações trabalhistas mais avançadas do mundo.

Agora, como se vê, pretende-se simplesmente acabar com a Justiça do Trabalho, criada especificamente para velar por esses direitos dos trabalhadores. Não se fala em revogar as disposições constitucionais que concedem esses direitos, mas, tão-só e simplesmente, em mandar os reclamantes para as “vias ordinárias”, ou seja, para a Justiça comum, que já anda atulhada de processos.

Quer-se, por conseguinte, como é fácil de concluir, acabar com os direitos dos trabalhadores. Porque o nosso direito é direito processual. Não basta ter direitos: é preciso poder exercê-los. E esses direitos são exercidos através de um processo. Como os processos já são lentos e cheios de obstáculos na Justiça especializada, existente atualmente, nota-se nitidamente que se diluirão ou simplesmente desaparecerão na “Justiça ordinária”. Trata-se, sem dúvida alguma, de uma maneira inteligente e enviezada de acabar-se com os direitos trabalhistas. Como praticamente já se acabou com os direitos previdenciários de milhões, quando a emenda constitucional 20 passou a dar direito de aposentadoria computando-se apenas o “tempo de contribuição”, e não o “tempo de trabalho”, e extinguiu a aposentadoria dos “temporários”.

Isso tudo nos faz lembrar aquelas magistrais palavras de Rui Barbosa, quando dizia: “Solta Pedro I o grito do Ipiranga. E o caboclo em cócoras. Vem, com o 13 de maio, a libertação dos escravos; e o caboclo de cócoras. Derriba o 15 de novembro um trono, erguendo uma República; e o caboclo, acocorado. No cenário da revolta, entre Floriano, Custódio e Gumercindo, se joga a sorte do país, esmagado quatro anos por “Incitatus”; e o caboclo ainda com os joelhos à boca. A cada um desses baques, a cada um desses estrondos, soergue o torso, espia, coça a cabeça, “magina”, mas volta à modorra e não dá pelo resto”.