A democratização da apresentação

Dia desses, lendo os jornais, fui “apresentado” formalmente a um meliante – desses de pequena cabotagem, quando comparados a outros tão mais refinados quanto perniciosos. Lá estava ele,  algemado, de cabeça baixa, tendo ao fundo uma parede coberta com símbolos da instituição cujos agentes o prenderam. À sua frente, o costumeiro batalhão de fotógrafos. 

Fiquei a meditar: na mesma data outras pessoas foram encaminhadas ao cárcere, no bojo de um dos mais rumorosos escândalos que este país já presenciou. Cavalheiros de fino trato, frequentadores de ambientes os mais seletos, tiveram suas prisões decretadas. 

O crime que teria sido cometido pelo meliante “apresentado” consistiu no roubo de alguns milhares de Reais. Já o dos refinados cavalheiros, segundo consta, no desvio de muitos bilhões, coisa que, suspeita-se, alcançaria praticamente todo o Brasil – inclusive o Espírito Santo, estado no qual aquele primeiro meliante foi preso. 

Mas eis que – surpresa – não houve a “apresentação” de qualquer daqueles distintos cavalheiros! Sequer um deles foi algemado e colocado diante de um paredão decorado com distintivos ou logotipos, a fim de que submetido fosse à execração pública, como na Idade Média. 

Ainda na mesa do café, fiz uma conta rápida: o que os distintos cavalheiros – não “apresentados” ao público, repito – teriam desviado equivaleria, com base nos valores até aqui divulgados, ao produto do roubo de nove mil meliantes como o que me fora “apresentado”. Fiz mais algumas contas: cada um dos distintos cavalheiros encarcerados teria desviado o equivalente ao roubo de 692 meliantes “comuns” – e estes são “apresentados”, enquanto que aqueles, não! 

Fiquei a pensar no Japão. Há alguns anos um psicopata, à vista de todos, esfaqueou e matou diversas pessoas no bairro de Akihabara, em Tóquio. Sua ação foi filmada por câmeras de segurança – vale dizer, mais do que comprovada. No entanto, as autoridades e os jornais o trataram como mero “suspeito”, preservando sua imagem e dignidade, até que condenado fosse. Em momento algum aquele bárbaro psicopata foi exposto publicamente de forma degradante – e eis aí um belo exemplo, a contrastar com o nosso seletivo cumprimento dos preceitos constitucionais. 

Mas prossigamos: uma vez preso, considerável é a possibilidade de que aquele primeiro meliante venha a ser vítima de tortura – reporto-me, para chegar a tal conclusão, aos tão numerosos como graves episódios já encaminhados ao nosso mundo das leis. Tive a oportunidade de acompanhar as apurações de vários deles. 

Mas eis que – surpresa, novamente – nunca soube de um distinto cavalheiro torturado. Só miseráveis! Aliás, chega a ser inconcebível a cena de senhores engravatados amarrados a um pau-de-arara, levando choques elétricos ou recebendo pelas narinas jatos de gás de pimenta. Jamais – o Brasil não se permitiria ser palco de tamanha crueldade! 

Não é raro, igualmente, que um preso miserável seja privado até de água – pessoalmente, já concedi Habeas Corpus a detentos que, encarcerados em uma penitenciária inaugurada sem rede de água – haja carro-pipa, aliás – foram obrigados a saciar a sede no vaso sanitário. Já quanto aos distintos cavalheiros, soa impensável serem forçados a beber água nascida de tão abjeta fonte. Se isso acontecesse, movimentar-se-ia – e com razão, fique isto muito claro – a consciência jurídica nacional. 

E é assim, de exemplo em exemplo, que seguimos em frente, de peito estufado, sempre recitando nossa Constituição Federal, segundo a qual todos são iguais perante a lei – lei que, na fina ironia de Anatole France, proíbe, em seu majestoso igualitarismo, tanto os ricos como os pobres de dormir debaixo da ponte. 

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