Sou um nacionalista

Eu moro no centro de uma capital de Estado. Minha casa fica a menos de 100 metros de dado palácio governamental – um daqueles prédios ricos em bandeiras e símbolos. Há poucos dias, para nosso horror, iniciou-se praticamente ao lado dele mais um pesado tiroteio, patrocinado por gangues rivais.

Vi, como de costume, os moradores fugindo de suas casas. Pelo caminho olhavam o palácio. Contemplavam o brasão de uma instituição e o pavilhão nacional. Abaixavam a cabeça e continuavam a fugir.

Testemunhei uma cena profundamente simbólica: um policial sai do palácio, escoltando uma funcionária até o estacionamento – afinal, bandidos estão disparando tiros de escopeta ali perto. Ela vai embora e ele retorna lá para dentro, fechando a porta na frente da gente. Ao fim do cabo, há que se proteger a honra do Estado. Na rua, ao lado de muitos populares, fiquei a pensar se não deveríamos remover daquele vetusto prédio os símbolos nacionais – seria menos humilhante para os retirantes, o país e os próprios policiais.

No Tribunal de Justiça sou informado de que nossos Oficiais de Justiça só conseguem entrar em diversos bairros se devidamente autorizados por traficantes armados de fuzil – exibidos pelas ruas em plena luz do dia. Um desses bairros fica a 200 metros das sedes do Poder Judiciário, do Ministério Público e do Poder Legislativo – e do outro lado da rua da Secretaria de Segurança Pública. Talvez devêssemos retirar dos documentos oficiais os símbolos nacionais, e da identidade dos Oficiais de Justiça o distintivo – seria, repito, menos humilhante.

Este quadro é nacional. Nosso país vive na barbárie. No Japão, em todo o ano de 2015, uma única pessoa foi morta a tiros. Aqui chegamos a umas 120 por dia. Li que já linchamos quatro semelhantes nossos por semana, nas periferias de nossas maiores cidades. Um pesquisador de São Paulo, após estudar vinte mil desses linchamentos, constatou que uma única pessoa – só uma – foi punida. Os que não matamos enviamos para sórdidas masmorras – que causam horror pelo mundo afora e a vergonha de por conta delas sermos processados em cortes internacionais. E ainda temos a coragem de dizer ser o Brasil um país cristão…

Os poucos turistas estrangeiros que aqui recebemos chegam quase sempre vestidos à semelhança de mendigos, instruídos pelas agências de viagem de seus países. Que vergonha! Que vergonha! Somos retratados perante o mundo como um povo primitivo, incapaz de manter a ordem nas ruas.

Vejo, absolutamente perplexo, o Estado reagindo através de “blitz” realizadas onde os criminosos sabidamente não estão. Dizem alguns que é para proporcionar às classes formadoras de opinião uma tal “sensação de segurança”. E fico a me perguntar: será que descemos tanto enquanto Nação?

Vejo a minha gente cabisbaixa. Submissa. Dizendo que “isso é assim mesmo”. Transformando vítimas em culpados – “teriam dado bobeira”, afinal. Evitando o assunto.

Eu não evitarei este assunto. Sou um nacionalista. Afirmo e reafirmo: estamos vivendo na barbárie, assassinando, juntamente com o futuro de toda uma geração de brasileiros, uma economia que poderia ser pujante.

Dar um fim a este quadro é possível – basta a presença efetiva do Estado nas grandes incubadoras do crime: os cinturões de miséria que envolvem nossas maiores cidades. Até lá, nosso já desmotivado aparelho policial apenas “enxugará gelo”, eis a verdade simples.

Há que se atacar a causa do problema, e não sua consequência. Aquelas comunidades merecem e precisam, para o bem de todos, de segurança, saneamento básico, escolas livres da influência de criminosos e saúde.

A propósito desta vejo, há décadas, nossos doentes gemendo abandonados pelos corredores imundos de alguns hospitais públicos. Idosos desmaiando em longas filas de atendimento. Mães com crianças chorando de dor saindo pelas madrugadas em busca de um socorro que dificilmente virá.

Não consigo aceitar que semelhantes nossos tenham tal destino. Não entendo como um país tão rico não se preocupe em proporcionar aos seus filhos a dignidade simples de um leito nos momentos de dor. Somos, afinal, um povo temente a Deus. Será que uma rotina de décadas entorpeceu nossas mentes?

Leio que a cada dia morrem vinte crianças no Brasil por conta de doenças cuja origem repousa na falta de saneamento básico. Sou informado de que, no ritmo atual de investimentos, quase um século se passará até que encerrada esta chacina. Contemplo, indignado, as costumeiras e tristes cerimônias de sepultamento de tantos brasileirinhos.

Será possível que nosso país não tenha recursos sequer para colocar canos sob a terra? Ou estará o motivo no fato de serem obras que não “aparecem”? Eu não sei. Eu só sei que hoje enterramos mais vinte brasileirinhos – assim como ontem, e anteontem, e em todos os dias anteriores desde que me entendi como gente.

Visito países infinitamente menos ricos que o nosso. Vejo outros povos viajando com segurança e transportando suas mercadorias de forma eficiente através de modernos trens e barcos. Lanço um olhar para o meu Brasil. E o constato acorrentado a rodovias que mais parecerem matadouros – de pessoas e de riquezas.

É difícil de entender como um país continental praticamente não utilize hidrovias ou ferrovias! E sequer discuta problema tão sério. Por que será? Quem ganha com isso? Enquanto não respondidas tais questões, quantas vidas ainda perderemos inutilmente? A minha? A sua? A de algum ente querido?

Por falar em infraestrutura, não nos esqueçamos da energia. Lembro-me da inauguração da hidrelétrica de Itaipu. Não poucas vezes ouvi, naqueles dias, pronunciamentos inflamados no sentido de tratar-se de um “elefante branco”, uma “obra faraônica”. Em sala de aula, um meu professor nos ensinou tratar-se de um absurdo, pois ele tinha em mãos cálculos sérios garantindo que o Brasil não teria problemas com energia para os próximos dois séculos. Vendo, hoje, o meu país importando energia elétrica do Uruguai e da Argentina, e bem assim sofrendo “apagões” constantes, fico a me perguntar: o que aconteceu? Será que era tudo demagogia barata, afinal? O que fizeram com o nosso país? Quem ganhou com isso?

Vejo outros povos planejando suas vidas e economia em paz, usufruindo dos benefícios que a estabilidade jurídica traz – aliás, eis aí o combustível maior de qualquer processo de desenvolvimento sustentável. Enquanto isso cá estão os brasileiros em estado de permanente perplexidade, atormentados por uma insegurança jurídica vergonhosa.

As normas de ontem não são as de hoje, que também não serão as de amanhã – mudam ao bel-prazer da imaginação dos nossos tecnocratas e cleptocratas. Até o passado, neste país, é indefinido! Como chegamos a tal estágio de primitivismo? Quem ganha com isso? Eu não sei. Só sei quem perde: as pessoas de bem. Os bons brasileiros.

Não basta aos nossos tecnocratas, porém, ver nossa economia afundar por conta da criminalidade, da falta de segurança jurídica, da péssima infraestrutura, da corrupção e afins. Há que se buscar ralos outros, ainda mais cavernosos.

Li, não faz muito tempo, que aproximadamente 30% de todos os impostos pagos pelos brasileiros são destinados ao pagamento dos juros da dívida pública interna. Nos não tão distantes idos de 2006, por exemplo, os recursos que destinamos no orçamento para custear a Previdência Social, a Assistência Social, a Saúde, a Educação, o Trabalho, a Reforma Agrária, a Segurança Pública, o Urbanismo, a Habitação, os Direitos da Cidadania, o Desporto e Lazer, a Cultura e até o Saneamento, somados, deram uns R$ 317,9 bilhões – R$ 7,9 bilhões a menos do que pagamos só de juros naquele ano! 

Que dívida é essa? De onde veio? Quem a criou? Foi para onde esta montanha de recursos, hoje rondando a casa dos R$ 4 trilhões? Por que nosso povo não discute esta situação? Quem ganha com isso?

Sei que o Brasil tem recursos mais do que suficientes para resolver este grave problema. Temos ouro a fartar, petróleo em abundância e minérios mil – eis as jóias nacionais. Elas acabam, porém, entregues a empresas particulares, muitas delas estrangeiras, que as extraem nos pagando um dos menores “royalties” do planeta. É quando percebo que não sairá daí a solução. Sairá do sangue de milhões de brasileiros – particularmente da geração que nos sucederá.

Há também a internacionalização da nossa economia. Entregamos a estrangeiros o melhor de nossas riquezas, a um ponto tal que já dependemos deles para adquirir o leite de nossas próprias vacas e a água de nossas próprias nascentes. Do agronegócio à mineração, já os vejo predominando em nosso país, a cada dia mais parecido com uma colônia.

Não sou xenófobo e nem adepto do isolamento. Sou um entusiasta da globalização. Sou autor de livros sobre comunidades econômicas, nos quais defendo os processos de integração. Mas o que vejo aqui é absurdo. Nós destruímos vasta parcela do parque industrial e empresarial brasileiro – inclusive aquela estratégica, da qual outros povos não abrem mão. E sequer adentro nos empréstimos que concedemos para que empresas particulares comprassem o que nosso é, pagando-nos com os lucros futuros do empreendimento. Quem ganhou com isso?

Este processo ainda não acabou. Continua. Segue firme e forte, passando ao largo de qualquer debate nacional. Seria interessante que o povo brasileiro soubesse quantos recursos saem hoje do país apenas a título de remessa de lucros dessas empresas aos seus países de origem. Quantos empregos para lá transferimos. E quantos chefes de família já lançamos e lançaremos ainda no desemprego. Sou um nacionalista. Gostaria de saber isso.

De toda sorte, algum dinheiro continua por aqui – que nos “viremos” com as sobras. Será quando passaremos a conviver com uma faceta tenebrosa do Brasil e de suas elites. Comecemos pelas obras iniciadas e abandonadas após terem consumido fortunas, vítimas da mesquinharia mais vil e repulsiva, que nestas plagas atende pelo nome de “falta de continuidade administrativa”.

Passaremos pela ineficiência pura e simples. Pelas obras que consomem anos, quando deveriam consumir meses ou até mesmo semanas. Enquanto se arrastam, vão falindo empresas que  tornaram simplesmente inacessíveis. Penso nos chefes de família que perderam o sustento. Assisto a inacreditável publicidade oficial sobre tais obras. E me entristeço.

Vejo outros países construindo maravilhas em tempo recorde. Anunciando com orgulho suas conquistas tecnológicas. Enquanto isso, em humilhante contraste, o surpreendente aqui é terminarmos algo – fato invariavelmente marcado por bandas de música e gasto de fortunas em publicidade oficial. E fico a me perguntar: somos mesmo tão incapazes? Tão medíocres? Tão pequenos?

Não nos esqueçamos dos desastres naturais. Alguns são inevitáveis. Outros, porém, fruto do mais puro e histórico descaso. Quando acontecem, em meio aos desabrigados e até cadáveres, não é raro encontrarmos os responsáveis por aquela desgraça em visitas oficiais – sempre vestidos com vistosos coletes alaranjados. Fico a pensar se não seria mais adequado irem de burca…

Mas sigamos em frente. Meditemos sobre o Estado cartorial e patrimonialista, tão típico dos lugares atrasados e das cortes imperiais de outrora – e do Brasil de hoje. Aliás, haja “cartório” para satisfazer tantos nobres! É assim que passamos a conviver com uma economia quase que “loteada”.

Aos nobres os privilégios legais, as benesses administrativas e os incentivos fiscais. À patuleia, os rigores da lei, as restrições administrativas e os fiscais à porta. Gostaria de saber de quanto, afinal, abrimos mão em nome de “renúncias fiscais”. Há alguns dias li serem bilhões. Será? Quem ganha com isso? É uma pena que nosso povo, também aqui, permaneça alienado!

Fiéis às origens imperiais, cultivamos ainda verdadeira paixão pelos carimbos! Lá estão os nobres com aqueles pequeninos objetos sobre a mesa, mantendo um dos países mais burocratizados do planeta! Desde criança leio estudos e mais estudos sobre o quanto perde nosso país por conta da burocracia – mas nada se faz! Continuamos às voltas com atestados de residência, certidões, declarações, manifestos etc. Será que é para proporcionar funções aos nobres? Não sei. Gostaria de saber.

Uma outra explicação para este fenômeno seria a corrupção. Somos um dos países mais corruptos do planeta. Os valores movimentados pela corrupção neste país – e fico apenas com os publicados na imprensa – fazem corar qualquer mafioso de plantão.

Quando criança via humoristas retratando jocosamente corruptos que embolsavam 10% do valor envolvido em cada operação. Hoje, falam que este percentual é o que sobra.

Há poucos dias ouvi de um amigo que “o país está mudando de postura quanto a isso”. Lamento desapontá-lo, amigo, mas não está. Não se deixe iludir por algumas exceções que apenas confirmam a regra de que a corrupção neste país segue firme.

Estarei exagerando? Não. Visitem nossas prisões. Encontrem lá 99,99% de pobres. Descubram que pessoas investigadas em inquéritos – sim, meramente investigadas – não podem ser sequer estagiárias na administração pública, enquanto condenados por corrupção podem ser candidatos a qualquer cargo e ocuparem qualquer função.

Não se iluda, meu amigo, por algumas poucas operações realizadas contra a corrupção. Acontecem a duras penas, às custas do sacrifício de alguns poucos idealistas – que quase sempre pagam, de forma pessoal, pela ousadia do cumprimento do dever. Arrisco dizer que já estão em extinção.

Mudar esta realidade é possível. Temos todos os instrumentos à mão. Mas falta-nos sentimento de pátria. Falta-nos grandeza. Nosso sistema legal, talvez por conta de certas origens históricas, é leão diante de carneiros, porém carneiro diante de leões.

Sei do que estou falando. Sou juiz há uns 30 anos – talvez o único do Brasil a ter tido dois parentes próximos assassinados em épocas distintas, supostamente a mando do crime organizado, em casos que deram em nada. Prescreveram. Só encontraram o arquivo.

Não faz muito tempo ouvia de uma diplomata estrangeira uma curiosa observação: “no meu país quando alguém é condenado vai para a cadeia e pronto. Simples assim. Não entendo porque aqui no Brasil seja tão difícil isso”.

Pois é. Até onde li, 193 dos 194 países filiados à ONU contemplam prisão em seguida a condenações em primeira ou segunda instância. E aqui ainda discutimos isso! Estaria o mundo inteiro errado, e apenas nós certos? Quem ganha com isso?

Neste país, quando um magistrado envia às torturas de nossas mais fétidas masmorras um miserável qualquer, há apenas um ato rotineiro de combate ao crime, sequer percebido. Mas, quando acontece de decretar a prisão de um grande corrupto, destinando-o às nossas melhores penitenciárias, revolta-se a consciência jurídica nacional, cogitando de violação ao princípio da presunção de inocência.

Quando um magistrado utiliza o depoimento de um delator para desbaratar alguma quadrilha de traficantes de morro, há apenas o bom uso de um instrumento legal. Mas, quando acontece de a delação ser feita em ambiente de poderosos, agitam-se os cientistas do Direito, preocupados com a serenidade dos pretórios.

Quando um magistrado possibilita o desbaratar de todo um bando de meliantes de periferia, não se detendo naqueles primeiros “bagrinhos” apanhados no início de qualquer investigação, terá ele agido bem e não pecado por omissão. Mas, quando acontece de o “bando” ser composto por cavalheiros refinados, subitamente inquietam-se os pregadores da Justiça, sugerindo que ele seria, afinal, não mais que um “incendiário”.

Quando um magistrado impede manobras protelatórias efetuadas pela defesa de algum acusado de “pequena cabotagem” é elogiado com o termo “enérgico”. Mas, quando acontece de o réu ser alguém poderoso, imediatamente chega, pelas mãos dos Doutos, a alcunha de “perseguidor”.

Quando um magistrado notabiliza-se por reprimir com destemor os crimes dos miseráveis é elevado à condição de herói. Mas quando acontece de combater a corrupção em seus mais elevados níveis, logo é rotulado pelos “formadores de opinião” como “polêmico”.

Quando um magistrado adota providências sérias contra algum botequim de periferia que esteja a perturbar a paz da vizinhança ganha o conceito de “sensível”. Mas, quando acontece de ser uma poderosa corporação a fazê-lo, impunemente, ao longo de décadas, reservam os “analistas” a quem age a reputação de “afoito”.

Quando um magistrado sofre a vingança violenta de algum acusado miserável vira nome de prédio público. Mas, quando enfrenta retaliações por ter sido “incendiário” ou “polêmico”, encontra apenas o silêncio que desanima outros pelo exemplo.

Não me refiro, com estas palavras, a nenhum caso em particular. Refiro-me, antes, ao Brasil hipócrita que sempre teve “meia-consciência”, origem de uma “meia-ordem”, seguida de um “meio-progresso”.

Quem ganha com isso? Seria interessante que o povo brasileiro soubesse.

Mas os brasileiros não sabem! Passam os dias a ver discussões sobre o divórcio escandaloso de alguma atriz norte-americana. A acompanhar as últimas novidades da família real de algum país. Ou a saber das últimas peripécias de dado jogador de futebol.

A verdade é que somos um povo alienado – e por isso mesmo jogados de um lado para o outro. Vagamos por aí sem rumo, passando ao largo dos mais sérios problemas nacionais.

Vamos a um exemplo tosco: a reforma da previdência social. Diz uma CPI do Congresso Nacional ser a previdência superavitária. Afirma o governo que não. Com quem a verdade? Nosso povo simplesmente não sabe! Não consegue ver as contas, debater sobre os dados. Sequer tempo para isso terá.

Por onde anda o ouro de Serra Pelada, trombeteado como a salvação do Brasil? Não sabemos. E o manganês da Serra do Navio? Também não sabemos. E a Amazônia? Está mesmo sob ameaça? Dou meu testemunho pessoal: há alguns anos vi, na saída de Boa Vista, um portão e uma placa com os dizeres “Nação indígena. Entrada proibida”. Já tive em minhas mãos um mapa comprovando estar a Amazônia cercada por bases militares estrangeiras. A quantas anda a situação hoje? Não sabemos, eis a verdade.

Há poucos anos – no máximo uns três – berrava-se pelas esquinas que o “pré-sal” somente poderia dar retorno décadas à frente, pois que ainda tecnicamente inviável sua exploração comercial. Pois é. Tão logo entregamos mais esta riqueza a empresas estrangeiras a produção começou e disparou! O que aconteceu? O que não nos falaram? Um povo não pode viver assim.

Esta alienação já chega aos nossos usos. Sem que o percebamos começamos a ser estrangeiros em nossa própria terra. Passeie por alguns bairros brasileiros ou centros comerciais e tenha a nítida impressão de estar nos EUA, tal a quantidade de letreiros e nomes em inglês.

Nossos eventos não mais começam – “estartam”. Café, só se for no “coffee break” – deve ser mais gostoso. Retorno virou “feedback”. Já fui a restaurantes brasileiros com o cardápio em inglês, sem tradução para o português. Não sou, insisto, xenófobo – mas assusta-me a falta de amor-próprio fruto de um provincianismo em tão alta escala.

Há algumas semanas fui a uma escola pública – encontrei-a decorada para o “Halloween”! Lançaram na miséria e no desemprego até o boitatá, o saci-pererê, o sucupira e a mula-sem-cabeça…

Não adiantará nos enrolarmos na bandeira do Brasil pelas ruas, ou cantarmos o hino nacional antes dos jogos de futebol, enquanto vivemos em tal estado de alienação. E eis aí algo cuja mudança há que começar em nós, em nossas mentes e espíritos.

Sob o exemplo ruim das tantas autoridades corruptas abençoadas pela impunidade já passamos a desdenhar a ordem. Percorra-se qualquer grande cidade brasileira e perceba-se o nível das depredações, dos atos de vandalismo e do repúdio a princípios básicos de conduta. Recordo-me, a propósito, da expressão de desânimo que vi na face de alguns compatriotas enquanto contemplavam a cena já comum de uma patinete destinada a locação lançada ao mar por puro espírito destrutivo – estava ali, coberto pela água, um amargo retrato do Brasil.

Vejo, cotidianamente, pessoas letradas – doutores, até – urinando pelas ruas. Conduzindo na contra-mão à luz do dia. A cada momento mais egoístas e individualistas, abandonando um passado no qual éramos conhecidos pela cordialidade. Nos tornamos um povo violento, afinal.

Nossos ancestrais nos entregaram um país coeso. Unido. Que começamos a dividir por conta de ideologias que nunca foram nossas, muitas das quais já sepultadas pela história.

Vejo, com imensa tristeza no coração, as famílias brasileiras divididas entre “esquerda” e “direita”, seja lá o que isso for. Trocamos o debate simples entre “certo” e “errado” pela via estreita do radicalismo ideológico – que nos faz definhar enquanto povo. Dificulta soluções. Constrói muros, ao invés de pontes.

Já se gritou, pelas ruas, que “um povo unido jamais será vencido”. Arrisco dizer que estamos a caminho de sê-lo, pois que unidos não mais somos. Estamos abandonando a sabedoria da moderação, que nos unia, pelo radicalismo ideológico, que nos afasta.

Soube de três pesquisas de opinião pública indicando que já não nos importamos com a democracia. Estamos falhando em desenvolver nosso país sob um regime democrático, pelo qual tanto lutou-se. É muito triste, isso.

Converso com ricos e pobres – e ouço, invariavelmente, uma expressão que me angustia: “já perdi a esperança neste país”. Muitos, desiludidos, começam a ir embora. Temos perdido cérebros valiosos, que poderiam contribuir com a reconstrução de nossa economia.

Não sou pessoa de muitos amigos – mas já não consigo contar nas mãos os que emigraram. Os que viram como saída o aeroporto, e como despedida a frase “amo o Brasil, mas não suporto mais a insegurança, a esculhambação e a impunidade”.

Ouço, deles, manifestações de alívio por conta de coisas simples que passaram a viver em outros países, tais como não precisar entrar em um carro às pressas por medo de assaltos. De poder levar os filhos para brincar em algum parque seguro e bem-cuidado. Ao ouvi-los, é indescritível a angústia que me bate no peito.

Volto ao início do milênio. A uma pesquisa do Conselho de Inteligência dos EUA sobre cenários globais para 2020. Previu-se para o Brasil, por conta do petróleo e do agronegócio, um ciclo de crescimento econômico fabuloso, desde que reduzisse os níveis de corrupção e criminalidade – ou assumiria as feições de um país desigual e conflituoso. Nós falhamos. Nossa culpa. Nossa tão grande culpa.

Recebi, há alguns anos, decerto como incentivo para a vida, a Ordem do Mérito Naval da Marinha do Brasil e a Medalha do Pacificador do Exército Brasileiro. Olho para elas. Fico a pensar no Almirante Barroso. Em Tamandaré. Que diriam eles ao ver nosso litoral tão entregue? Que pensaria Caxias ao ver nosso país tão indefeso e conflituoso? E o Marechal Rondon, ao ver a Amazônia cercada por bases militares estrangeiras? 

Oswaldo Cruz deve estar a se contorcer na tumba, vendo-nos combater em pleno século XXI muitas das pragas que com sacrifício pessoal ele erradicara. Qual seria a reação de Mauá ao saber que nossas ferrovias estão todas sucateadas? De Cairu, ao nos ver importadores até de café e feijão? De Machado de Assis, ao nos ver falando inglês sem a menor cerimônia? De Monteiro Lobato, ao ver nosso folclore e nosso petróleo indo embora – teria sido ele preso em vão?

O que falaria Ruy Barbosa ao contemplar nosso sistema jurídico e a impunidade que gera? Será que escreveria, uma vez mais, sobre a vergonha de ser honesto?

A quem achar muito sombrias estas palavras, um alerta: sou uma pessoa otimista e bem-humorada. Sou um entusiasta da democracia – já a defendi, enquanto presidente do TRE, indo às ruas em passeatas e atos que promovi em cada município do meu estado. Acredito na minha gente. Durante as manifestações de 2013 fui, enquanto presidente do Tribunal de Justiça, o único chefe de poder do Brasil a receber meus compatriotas na porta da instituição. Aprendi a amar este país desde a infância, quando o estudava guiado por meu saudoso pai, professor de problemas brasileiros e ex-Deputado Federal.

Assim, o grave desta fala não reflete pessimismo algum – apenas a amargura responsável, serena e consciente de quem vê seu país rumando célere rumo a uma cisão de consequências imprevisíveis.

As soluções existem, é claro. Mas não virão do governo, da imprensa ou das instituições – por um motivo ou outro, estão tolhidas. Deverão vir, uma vez mais, das ruas. Do povo. Indicaria, modestamente, três caminhos a seguir – todos simples e possíveis.

O primeiro deles é simplesmente dizermos “não” aos maus e omissos. Não há necessidade, para tal, de passeatas ou agressões. Basta que cada brasileiro nacionalista, em sua trincheira, não se omita. Através do exemplo de nossas condutas teremos legitimidade para, com serenidade mas firmemente, repudiar os maus, criando uma “onda do bem”. Lentamente, a voz da maioria silenciosa encontrará eco na imprensa e far-se-á ouvir pelas instituições. E isso mudará nossa sociedade.

O segundo também é simples: identificar claramente os maus e omissos, buscando responsabilizá-los através da sociedade civil organizada. “Dar nome aos bois” e chamá-los às falas nos termos da lei – ou seja, civil e criminalmente.

A terceira via é igualmente singela: valendo-nos da iniciativa popular levarmos a debate as mudanças que se fazem necessárias em nossa legislação. Já fizemos isso com sucesso – as duas mais importantes e moralizadoras leis eleitorais que temos saíram do são sentimento das ruas. Que tal prosseguirmos?

Não veremos, em nosso tempo de vida, grandes mudanças. A situação está séria demais. Demanda tempo. Morreremos, pois, sem ver o Brasil grande dos nossos sonhos. Mas não nos sintamos derrotados, pois que nosso tempo não é o de Deus! Teremos feito a nossa parte, suavizando com grandeza a existência dos que estão chegando. No momento supremo de nossas vidas, aquele no qual ela termina, olharemos para trás com humildade, mas também com dignidade.

Peço licença, porém, para concluir no local onde comecei. No Morro da Piedade, ao lado do palácio. Decidi visitá-lo. Vi o mato crescendo, o lixo acumulado e as casas abandonadas. Ouvi de conhecidos que ali serviços públicos são precários ou não existem, por tratar-se de uma área entregue ao crime.

Perguntei sobre o policiamento. Resume-se a um único soldado que vi em uma guarita, no pé do morro. Um só. Na rua ao lado vejo três jovens ostensivamente armados passando – um deles com uma pistola à mão. Ao fundo, contemplo o verde de nossas matas. Levanto a vista. Encontro o azul do nosso céu. Sou um nacionalista. Penso no meu país. E de olhos marejados, com Castro Alves, fico a exclamar: Brasil, ó Brasil, onde estás que não respondes? Em que mundo, em que estrela tu te escondes?

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