A primavera e a falta do que comer

Todo o planeta tem acompanhado a denominada “Primavera Árabe”. A imprensa ocidental tem sido pródiga em anunciar a saga dos povos do Oriente Médio, em busca de mais liberdade e democracia.

Toda esta movimentação, efetivamente um raio de luz em uma parte do mundo dominada por regimes totalitários, me trouxe à memória um significativo artigo que li há quase dois anos, em um informativo da agência Xinhua, da distante China.

O autor do texto começou descrevendo, de forma despretensiosa, a imensa seca que flagelou imensas áreas da Rússia e da China. Alertou, em seguida, para o fato de que aquela calamidade iria causar uma quebra de 50% na safra de trigo da Rússia, e de 25% na da China. Isto realmente veio a acontecer, e de uma forma tal que a Rússia, tradicional exportadora de trigo, chegou a proibir temporariamente as exportações do produto.

Prosseguindo, o autor raciocinou: se vai faltar trigo na China, o governo terá que ir às compras. E não serão compras pequenas, pois falamos de uma população superior a um bilhão de habitantes. Isto também aconteceu.

O passo seguinte foi igualmente lógico: quando aumenta a procura, o preço do produto igualmente fica maior. Simples assim. Logo, seria previsível um aumento do preço do trigo – o que realmente aconteceu.

Pois bem: quando o preço de alguma coisa sobe, alguém já não poderá mais comprá-la. Isto também é óbvio. No caso, a parcela mais atingida seria exatamente a do norte da África, particularmente Moçambique, Marrocos, Tunísia, Egito, Líbia e Síria.

O momento seguinte era de visualização simples: haveria uma robusta alta no preço dos alimentos nestes países, com consequências funestas principalmente para a parcela mais pobre da população. A partir desta premissa, e considerando-se que a distância entre a civilização e a barbárie é de apenas quatro refeições, seriam previsíveis fortes turbulências naquela região.

Isto efetivamente veio a acontecer. No tempo previsto começaram os levantes dos miseráveis – o primeiro deles nas ruas de Moçambique, e tendo como mote precisamente o aumento do preço do pão.

O restante da história nós já conhecemos. Tal qual um castelo de cartas, os povos daquelas regiões foram às ruas, e governos foram derrubados. Pois é: talvez, mais do que a ânsia de liberdade, estivesse a mover aquela massa humana algo bem mais palpável, que chamamos de “fome”.

Esta análise, feita com antecedência de quase um ano, nos traz algumas reflexões preciosas, principalmente diante de recentes pesquisas demonstrando que apenas 64% dos brasileiros desejam o regime democrático – foi a conclusão de um estudo da ONU, outro do PNUD e outro doméstico, lá de São Paulo.

Não custa muito recordar, a propósito, que vivemos em um país no qual morrem 20 crianças a cada dia por conta de doenças causadas pela ausência de uma simples rede de esgoto. Estima-se que 65 milhões de brasileiros não conseguem se alimentar adequadamente, apesar de todo o esforço governamental.

E é assim, contemplando a cena de crianças buscando comida em latas de lixo e de doentes largados em corredores imundos de alguns hospitais públicos, que fico a pensar sobre as lições que a “Primavera Árabe” nos oferece.

Há alguns anos, indagada sobre os festejos pelos 200 anos da Revolução Francesa, Margareth Thatcher foi crua e direta: “não há o que comemorar, pois a única mudança é que após ela a patuleia passou a chamar-se povo”. Que tal meditarmos sobre isso?

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