A rotina do absurdo

Há alguns dias li em A Tribuna uma interessante reportagem sobre os cuidados que todos temos que tomar diante dos altos níveis de criminalidade que envergonham o Brasil. Mostrava-se, na matéria, uma série de flagrantes de condutas ditas “de risco”, ou seja, de atitudes perigosas para a segurança, que todos deveríamos evitar. O primeiro desses flagrantes foi o de um senhor que conversava imprudentemente ao celular em um estacionamento, ao lado de seu veículo.

A que ponto chegamos! Um pacato cidadão não pode sequer dar um simples telefonema ao lado de seu veículo, em um estacionamento, pois corre o risco de ser assaltado, sequestrado ou até morto! Sim, esta a reflexão que a reportagem induz: um ato banal, parte da rotina de muitos outros povos, no Brasil já é algo temerário. Aqui, o negócio é entrar correndo no carro, olhando para os lados nervosamente, e sair às pressas do local.

O fato é que, em uma total inversão de valores, as vítimas passaram a ser culpadas pelos crimes dos quais foram… vítimas! Frases como “quem mandou dar bobeira” ou “vacilou, pediu para ser roubado” já fazem parte desta nossa absurda rotina.

É assim que vamos nos transformando em uma sociedade amarga – basta dar uma olhada nas ruas e ver as pessoas andando apressadas, segurando seus pertences junto ao corpo. Nos restaurantes, qualquer barulho mais forte e todos olham assustados para a porta, imaginando um assalto. Nossas residências mais parecem presídios, dada a quantidade de grades que ostentam.

O brasileiro, com a sua resignação cabocla, vai sempre buscando refúgio em argumentos do tipo “não tem jeito, crime tem no mundo todo”, tratando de se adaptar carneiramente a esta verdadeira rotina do absurdo. Conforta-nos pensar que “outros povos estão como nós”!

Mas a verdade é que não estão. Segundo dados divulgados pela ONU atingimos em 2006 o índice de 25 homicídios por cada grupo de 100 mil habitantes – pasme, mas a média mundial é de apenas 8,8. Se considerarmos alguns países específicos, a vergonha será ainda maior: mata-se aqui umas 20 vezes mais que na Noruega, Irlanda ou Espanha.

Vamos a um exemplo sério: segundo consta, 44.663 brasileiros morreram assassinados em 2006. O chocante é que no mesmo período a Guerra do Iraque ceifou a vida de 18.655 seres humanos, bem menos que a metade! A conclusão é simples: dá para andar mais tranquilo em Bagdá do que pelas ruas de muitas cidades brasileiras.

Outro exemplo: na Guerra Civil do Timor Leste, que durou 24 longos anos, foram mortas umas 200 mil pessoas. Já aqui, a cada dez anos morrem assassinados 350 mil brasileiros. O cálculo é simples: lá, uma guerra produziu 8,3 mil mortes a cada ano. E aqui, onde reina a paz, uns 35 mil seres humanos foram assassinados no mesmo período.

Diante destes números, o hábito brasileiro de buscar consolo nos problemas enfrentados por outros países ou achar que tudo isso “é assim mesmo” me faz lembrar a exclamação de Victor Hugo: “as ilusões sustentam a alma como as asas a um pássaro”. Ou de Wieland: “a mentira que me alegra é preferível a uma verdade que me entristeça”.

O fato é que já passou da hora de ser discutido a sério este vergonhoso índice de violência! Talvez seja o momento de pensarmos em considerar as vítimas de crimes não como alguém que “vacilou”, mas sim pelo que elas realmente são: pobres vítimas.

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