O Boeing, as crianças e o esgoto

Um dos aviões mais populares do mundo é o Boeing 737, capaz de carregar entre 124 e 215 passageiros, dependendo da versão. Um outro avião muito popular é o Airbus A320, que carrega de 145 a 180 passageiros. Pois bem: faça um exercício de imaginação e pense em um avião destes ocupado exclusivamente por crianças – imagine 200 delas viajando nele. Agora tente conceber um horrível acidente, que cause a morte de todas estas crianças. Seria um escândalo, uma comoção nacional.

Em seguida tente imaginar um acidente desses a cada mês! Sim, é isso mesmo: a cada mês um Airbus ou um Boeing lotado de crianças se espatifando no chão e causando a morte de todas elas. Seria um escândalo mundial! Investigações seriam abertas, passeatas pediriam a punição dos culpados e toda a população manifestaria sua revolta diante deste descaso para com a vida humana.

Pois é. No Brasil, segundo divulgou o jornal A Tribuna no ano de 2002, 20 crianças morrem a cada dia por falta de esgoto sanitário – são 600 crianças por mês, ou 3 Boeings lotados. No ano passado divulgou-se que diariamente morrem 7 crianças menores de 5 anos devido a doenças decorrentes da falta de saneamento básico – são 210 crianças por mês só nesta faixa de idade, ou mais do que um Airbus lotado. E isto não causa impacto algum! Caiu na rotina! Que diferença faz um avião!

Realmente não dá para entender: se estas crianças estivessem morrendo dentro de modernas aeronaves seria um escândalo de gravíssimas proporções. Mas, como estão morrendo de doenças como cólera, disenteria, hepatite e gastroenterite, tudo passa a ser  ‘um simples problema social decorrente do processo de desenvolvimento’, e pronto!

E foi assim que, há poucos meses, divulgou-se que 53% dos brasileiros não têm acesso a saneamento básico. Concluiu-se, mais, que a ser mantido o ritmo histórico de investimentos nesta área a rede de esgoto só chegará para a totalidade da população no ano de 2122, quando o Brasil estiver celebrando seus 300 anos de independência!

A quem estiver supondo que esta é uma mazela de alguns grotões das regiões Norte ou Nordeste, recomendaria cautela. Os dados divulgados mostram que em Santa Catarina apenas 10% da população contam com esgoto, e no Rio Grande do Sul 15%. Seria este um problema das áreas rurais? Não: em Porto Alegre míseros 10% da população têm acesso a esgoto, e na média das regiões metropolitanas apenas 63%. Aliás, foram divulgados os casos de diversas cidades com mais de 100 mil habitantes nas quais o esgoto não chega nem a 3% dos moradores.

Neste mesmo Brasil, conforme dados divulgados no ano de 2005, o total de despesas em propaganda dos governos federal, estaduais e municipais somou quase R$ 1 bilhão. Enquanto isso, a cada mês caía o avião lotado de crianças. Em 2007 a União gastou R$ 17,4 milhões com festas, homenagens e solenidades promovidas por órgãos públicos. E continua caindo o avião com as crianças dentro. Em 2006 constatou-se que a corrupção abocanha 32% da arrecadação de impostos do Brasil. E lá vai o avião das crianças se espatifando no chão. Em 2007 o Tribunal de Contas da União identificou 400 obras paralisadas no país após terem consumido R$ 2 bilhões de recursos públicos. E eis o avião dos pimpolhos ardendo no chão, carbonizando-as todas.

O problema é mundial. Segundo a ONU, falta saneamento básico para 2,6 bilhões de pessoas, ou 41% da população mundial. Isto causa a morte de 42 mil pessoas por semana, e de uma criança a cada 20 segundos. Este problema poderia ser solucionado em 20 anos, com investimentos anuais de 10 bilhões de dólares – o equivalente a 1% dos investimentos militares feitos anualmente no mundo. Assim, talvez seja a hora de recordarmos as palavras de James Reston, segundo quem “todas as decisões políticas baseiam-se na indiferença da maioria”.

É sob este quadro dramático que aplaudimos, e de pé, a meta do Governo do Estado e da Prefeitura Municipal de transformar Vitória na primeira capital brasileira a ter o esgoto 100% tratado. Eis uma obra que, por ficar enterrada sob o solo, não é pirotécnica – apenas técnica – mas que salva vidas. Desejamos sucesso.

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