O pessoal do tapete

Dia desses, lendo um jornal lá da California (EUA), deparei-me com uma notícia interessante, daquelas que induzem uma reflexão sobre como temos varrido o que não nos agrada para a parte de baixo de algum tapete. 

Um grupo de pesquisadores decidiu passar os olhos na legislação de 58 cidades daquele estado norte-americano – aliás, o mais rico deles. Acredite: eles descobriram mais de 500 leis restringindo as atividades de pessoas que não tenham onde morar. Extraí, da matéria, quatro. 

A primeira proíbe que pessoas sem-teto fiquem paradas, não importa se de pé ou sentadas, em lugares públicos. Como, salvo as propriedades particulares, todos os lugares são públicos, esta lei criou a figura do sem-teto condenado a vagar sem descanso de um lugar para o outro, tal qual uma alma penada – se parar, vai preso! 

A segunda proíbe dormir em veículos ou lugares públicos. Isso ocorreu muito durante a última crise econômica lá acontecida – as pessoas perderam suas casas, confiscadas pelos bancos por conta de dívidas milionárias, mas não seus carros velhos. Garante-se, assim, que todas as sucatas – as de ferro e as humanas – se dirijam para a parte de baixo de algum tapete. 

A terceira lei criminaliza a atividade de pedir esmola. Funciona assim: você pede alguma ajuda e vai preso. Esta regra me fez recordar a doída acusação de J. Lec: “não grite por socorro à noite, pode acordar os vizinhos”. 

Mas, de todas, a que mais me impressionou é a que cito por último: a que torna crime o ato de dividir comida com alguém necessitado! Você leu corretamente: quem der comida a algum faminto será preso. 

Não pense, sequer por um instante, que estas leis são exceções, ou que ninguém as aplica. Muito pelo contrário. Que o diga um velhinho de 90 anos, morador da Florida (do outro lado dos EUA, registre-se). Após ter tido a infeliz ideia de oferecer um pouco de comida a um miserável, viu diante de si um policial a dizer “solte este prato agora” – como se estivesse portando uma arma perigosa. Em seguida, devidamente algemado, foi conduzido à prisão. 

Seriam todas estas leis algo isolado? Penso que não. Cito, como exemplo, notícia que li em outro jornal, este de Boston – uma rica cidade, mais ao norte dos EUA – sobre a atitude de Ava Lins, uma garçonete de 19 anos de idade. 

Concluído seu turno de trabalho, Ava estava saindo da lanchonete quando viu um miserável tiritando de frio, no meio da neve. Decidiu, então, levar para ele um café quente – o qual custa não mais que US$ 1 – que ela pagou, diga-se de passagem. Este ato custou-lhe o emprego, acredite. 

Mas voltemos à California: li que, desde o ano 2000, as prisões de sem-teto aumentaram 77%, enquanto que as de bêbados diminuíram 16%, e as de desordeiros 48%. E não nos esqueçamos de que, além de presos, os miseráveis também são multados – a cidade de São Francisco, por exemplo, gasta, por ano, US$ 317 mil só com a estrutura responsável pela cobrança destas multas, a maior parte delas acima de US$ 100. 

O curioso é que a Constituição dos EUA determina, taxativamente, a “promoção do bem-estar geral”. A do Brasil também, já em seu preâmbulo. E em seguida, no artigo 1º, eleva a fundamento de todo o país “a dignidade da pessoa humana”. 

Diante deste quadro, e já que falamos de dois países riquíssimos, como justificar a existência de tantos miseráveis no confronto com uma realidade de tanto desperdício de recursos? 

No mais, contemplando os cinturões de miséria que rodeiam nossas tão decadentes cidades, quase todos dominados por uma criminalidade tão ostensiva quanto impune, fico a pensar se a diferença entre o Brasil e os EUA estaria em que lá eles criminalizaram a pobreza, enquanto que aqui a entregaram ao crime. 

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