Piada de brasileiro

Dia desses, lendo o respeitado “Jornal de Notícias”, lá de Portugal, deparei-me com uma singular manchete: “Administração Pública deixa de exigir documentos que já detém”. Transcrevo, a seguir, alguns trechos da matéria. 

“O governo explicou que os cidadãos deixarão de ser obrigados a cumprir a “via-sacra” da entrega de documentos à Administração Pública que já estão na posse da mesma Administração Pública. Referiu, como exemplo, certidões de inexistência de dívidas ao fisco ou à Segurança Social”. 

Pronunciando-se, o Ministro do Desenvolvimento Regional Poiares Maduro explicou que “deixa de ser o cidadão que tem de fazer a via-sacra de ir recolher diferentes certificados e documentos na Administração Pública para ser a Administração Pública que tem de recolher ela própria a informação que já detém sobre o cidadão”. 

Fiquei curioso e saí à cata de maiores informações. Descobri, em outra reportagem, que este novo modelo “vai contribuir para uma mudança cultural da Administração Pública, que funcionará numa lógica integrada num mesmo espaço físico e com partilha entre parceiros”. 

Enquanto todas estas coisas maravilhosas acontecem lá em Portugal, continuamos nós, nestas terras tupiniquins, na peleja diária contra a burocracia, arrastando nossa dignidade de órgão em órgão, no aguardo de algum carimbo que nos conceda aquela cidadania tão apregoada em prosa e verso, inscrita na própria Constituição Federal. 

No que toca aos culpados por esta triste realidade, arrisco apontar dois: a “cultura do meu” e a vaidade – com a observação de que não raramente ambos se confundem e entrelaçam, de forma cúmplice e perniciosa. 

Comecemos pela “cultura do meu”. Enquanto estivermos a falar da MINHA autoridade, do MEU processo, da MINHA informação, da MINHA competência, do MEU setor, da MINHA prerrogativa, do MEU arquivo, e por tal trilha seguimos, nada mudaremos! 

Chega a ser chocante constatar que em meio a um acelerado processo de globalização continuamos, enquanto órgãos da Administração Pública, presos ao “meu”, rejeitando desde o uso integrado dos dados de que dispomos até a simples implementação de canais de comunicação mais eficientes. 

Vasculhe sua memória. Pense em quantas iniciativas de desburocratização você já assistiu – até um Ministério foi criado para tal! Lembre-se das vezes em que leu pelos jornais sobre projetos de integração de órgãos públicos. E perceba que todas estas boas intenções naufragaram, vítimas do “meu”. 

Olhe em volta. Veja, com olhos de ver, o absurdo de uma repartição cobrar de um cidadão informação de outra que funciona, não raramente, no mesmo prédio! E pobre de quem se dispuser a mudar isso – ao fim do cabo, estará “invadindo setores autônomos”, sempre ciosos dos seus instrumentos de manutenção de poder – seja lá o que for isso! 

O culpado seguinte, a vaidade, se não é menos tenebroso, apresenta-se mais sutil. De forma quase que imperceptível, vai ampliando as exigências da mentalidade burocrática que assola este país. Cria regras. Concebe formalidades. Engendra rituais. E com isso vai submetendo os mais fracos – aqueles do outro lado da mesa ou balcão. 

Trata-se de adversário tão pernicioso que nos faz esquecer a verdade simples de que as coisas da vida passam, e passam muito depressa – logo mais, seremos nós a estar do outro lado da mesa. Uma mesa que, algum dia perceberemos isso enquanto brasileiros, é redonda! 

Até lá, seja símbolo desta realidade o absurdo “Atestado de Residência”, uma prosaica conta de, por exemplo, telefone, emitida por alguma empresa privada e destinada a comprovar, perante a Administração Pública, que existimos e moramos em dado lugar. Interessante… parece piada! Piada de brasileiro! 

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