Procura-se a Princesa Isabel

A escravidão é uma prática muito antiga. Basta dizer que já havia referências a ela no Código de Hamurabi, datado de 1760 antes de Cristo. Diversos filósofos da antiguidade clássica – inclusive Aristóteles – ensinavam que alguns homens vinham ao mundo em um “estado natural de escravidão”.

Modernamente, o primeiro caso de escravidão legal aconteceu nos EUA, em 1654. Um cidadão de nome Anthony Johnson bateu às portas de um tribunal da Virginia para que a pessoa de John Casor fosse reconhecida judicialmente como de sua propriedade. O motivo alegado na época foi a existência de uma dívida.

Vencedor nos tribunais, Anthony Johnson passou a ser o primeiro proprietário de escravo legalmente reconhecido. Satisfeito, decidiu importar outros lá da África. A sanha escravocrata deste personagem só acabou quando entendeu-se que ele, por ser negro, era um estranho nos EUA – foi assim que o dito cujo teve seus bens confiscados e acabou na pobreza.

A bem da verdade, há que se dizer que a escravidão já existia, comumente, na África. O detalhe é que lá o senhor tinha o dever de proporcionar aos seus escravos um tratamento decente. Li que não eram bem vistos aqueles que deixavam de dar aos que o serviam condições dignas de vida.

Enquanto isso, aqui na América, outro foi o comportamento do chamado “homem branco”. Exemplifico com o testemunho de um holandês de nome Dierick Ruiters, datado de 1618: “Vi, certa feita, um negro faminto que, para encher a barriga, furtara dois pães de açúcar. Seu senhor, ao saber do ocorrido, mandou amarrá-lo de bruços a uma tábua e, em seguida, ordenou que um negro o surrasse com um chicote de couro. Seu corpo ficou, da cabeça aos pés, uma chaga aberta, e os lugares poupados pelo chicote foram lacerados a faca. Terminado o castigo, um outro negro derramou sobre suas feridas um pote contendo vinagre e sal. O infeliz, sempre amarrado, contorcia-se de dor. Tive, por mais que me chocasse, de presenciar a transformação de um homem em carne de boi salgada e, como se isso não bastasse, de ver derramarem sobre suas feridas piche derretido. O negro gritava de tocar o coração. Deixaram-no toda uma noite de joelhos, preso pelo pescoço a um bloco, como um mísero animal, sem cuidarem de suas feridas”.

Dizem alguns que estes tenebrosos tempos da escravidão acabaram. Trombeteia-se aos quatro ventos que a humanidade civilizou-se. Povos os mais respeitáveis nos dão, pela voz dos seus líderes, inesquecíveis lições de moral. Nos nossos dias não é raro que se agigante a consciência libertária da civilização ocidental punindo, a ferro e a fogo se preciso for, aqueles povos bárbaros de alguns países primitivos.

Enquanto isso, paradoxalmente, recente levantamento constatou que existem no mundo 27 milhões de escravos – nunca, em momento algum da história, os tivemos em quantidade tão grande. Um aviso: neste número não estão incluídos aqueles trabalhadores vítimas de abusos diversos – falamos de escravos mesmo!

Destes escravos, 65% são mulheres e 50% crianças. O custo médio de um deles gira em torno de R$ 180. A quem achar que esta prática é exclusiva de alguns países bárbaros e atrasados, segue um número chocante: pelo menos 14.500 escravos são traficados a cada ano para os EUA.

É assim que, no seio desta tão civilizada humanidade, segue firme a escravidão, proibida em todo lugar mas nunca tão alastrada, abafando a voz de Isabel com os ecos da mais cruel e refinada hipocrisia.

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