A criança que venceu o Brasil

Era uma vez, no distante sertão de Pernambuco, um menino órfão de pai que viu todos os bens de sua família serem carregados ou invadidos, sob as vistas omissas das autoridades – por vezes o termo “segurança jurídica” é um sonho distante no Brasil. O fato é que nossa gente parece não perceber que, neste mundo dito “globalizado”, o progresso procura apenas aqueles países que ofereçam estabilidade política, econômica, social e jurídica – afinal, como lembra a nossa bandeira, apenas a ordem traz progresso.

E foi assim, largado cruelmente nas mãos da desesperança, vítima precoce da falta de respeito aos direitos mais básicos, que este menino, com menos de dois anos de idade, viu-se transformado do dia para a noite em um retirante. Acabou indo parar lá no interior da Bahia.

É dura, no Brasil, a vida das crianças cujas famílias não são endinheiradas. Só para se ter uma idéia, 22% dos nossos mais de 25 mil catadores de lixo tem menos de 14 anos. Há também as crianças que trabalham a troco de miçangas, praticamente sem salário algum – segundo o IBGE, 48,6% dos menores entre 5 e 14 anos que trabalham no Brasil simplesmente não ganham remuneração alguma. E a jornada de trabalho deles não é pequena – são no mínimo 40 horas semanais.

Foi sob o pano de fundo desta realidade cruel e pouco comentada que este menino, então com oito anos de idade, começou a trabalhar em uma fábrica. Pois é. Ao invés das brincadeiras típicas da idade, aguardava esta infeliz vítima da falta de cidadania que assola o Brasil um acidente na linha de montagem, que acabou por mutilar um dedo de sua mão. À guisa de indenização, esta criança foi recompensada com o cargo de “menino de recados” da empresa.

E os estudos? Aquele pobre menino era um sério candidato a engordar a estatística segundo a qual, em cada grupo de 100 crianças, 41 não concluirão sequer o ensino fundamental. Seria ele, seguramente, um daqueles 68% de brasileiros entre 15 e 64 anos que não conseguem ler nada além de um anúncio de cinco palavras, conforme constatou recentemente o IBOPE.

Mas, decidido a vencer o Brasil, aquele menino, já bastante fora da idade, começou a frequentar a escola da Vila Operária. Com 17 anos, concluindo seus estudos básicos, ele mudou-se para Recife, indo trabalhar em um escritório.

Esta já teria sido a trajetória de vida de um vencedor, consideradas as dificuldades terríveis criadas pela quase que total negligência do Brasil para com suas crianças e cidadãos. Mas este rapaz desejou ir além. Decidiu não interromper seus estudos.

Em um país no qual Machado de Assis estudou escondendo-se no corredor de uma escola para assistir as aulas e aprendeu francês com um estrangeiro que era o padeiro do bairro, as esperanças não eram muitas – afinal, havia que se conciliar o estudo e o trabalho. A solução foi uma bacia de água fria, na qual mergulhava os pés para vencer o sono durante as incontáveis madrugadas dedicadas ao estudo. E foi assim que este rapaz, aos 22 anos, já tinha curso de inglês e era Bacharel em Ciências Econômicas.

Nesta época surgiu o primeiro bom emprego, em uma companhia da qual em pouco mais de um ano ele já seria sócio. Passou-se o tempo, e ei-lo proprietário do empreendimento. Mais alguns anos, e este rapaz já era dono de diversas usinas de açúcar. O fruto desta impressionante trajetória é conhecido: a criação de um dos maiores grupos empresariais do Brasil, que engloba  fábricas de cimento, de celulose e papel, empresas do ramo agropecuário, de comunicação e até de táxi aéreo.

Há alguns anos li os resultados de uma pesquisa feita no Japão, comprovando ser mais fácil reunir um patrimônio de US$ 1 milhão que chegar aos 100 anos – e isto lá, em uma terra na qual a longevidade é notória. Imagine aqui no Brasil! E eis o já agora idoso empresário celebrando seu centenário, surpreendendo tanto pela fortuna como pela saúde após uma vida tão árdua! E – suprema surpresa – ainda dando expediente diário na sede do grupo empresarial que construíra!

É de Disraeli a exclamação de que “a vida é curta demais para ser pequena”. E foi assim que há poucos dias, após 101 anos, cercada de toda a grandeza possível e imaginável, chegou ao fim a caminhada daquela criança nascida no interior de Pernambuco, e que na pia batismal recebera o nome de João Santos. Uma criança que venceu o Brasil.

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