Uma delegacia muito estranha

Era uma vez uma delegacia muito estranha. Os responsáveis por ela tinham o costume de torturar os presos das formas mais cruéis possíveis – tudo sob as vistas e a concordância do Ministério Público e do Poder Judiciário. Realmente, um escândalo. Este horror apenas ficou conhecido em detalhes pelo grande público graças a uma pequena parte da imprensa.

Foi assim que, apenas em agosto de 2002, um dos presos foi submetido a nada menos que 83 sessões de tortura – uma média de uma sessão a cada 9 horas! A tortura consistia em simular o afogamento, mergulhando a cabeça do preso repetidas vezes dentro de um tanque de água.

Um outro preso não teve tanta sorte: passou por inacreditáveis 183 sessões de tortura no mês de março de 2003. Isto dá uma média de uma sessão de tortura a cada 4 horas. Sim, a cada 4 horas durante todo um mês este preso era retirado de sua cela e submetido a uma sessão de tortura.

Todos estes números, de forma absolutamente incrível, foram minuciosamente registrados pelos policiais. As sessões de tortura chegaram até a ser registradas em vídeo, tamanha a certeza da impunidade.

A simulação de afogamento não era a única tortura utilizada naquela estranha delegacia. Os policiais descobriram, por exemplo, que um dos presos ficava em pânico ao ver insetos. Cuidadosos, antes de torturarem este preso jogando lagartas dentro de sua cela, solicitaram por escrito autorização ao Ministério da Justiça. A resposta do governo foi inacreditável: “a utilização de insetos inofensivos é recomendada no caso de fobia de um detento”.

Outros policiais eram menos sutis. Amantes da violência, gostavam de arremessar os presos contra paredes. Mas não eram paredes comuns – eram de um tipo especial que desabava sob o choque violento de um corpo. De forma a evitar que a coluna vertebral dos presos se quebrasse, os policiais foram orientados pelo governo, por escrito, a colocar pedaços de pano ao redor do pescoço deles.

Havia ainda um outro grupo de policiais que gostava de amarrar os presos a uma cadeira cujo encosto era fortemente inclinado. Aí, enfiavam um pedaço de pano na boca do preso e ficavam derramando água, dificultando ou mesmo inviabilizando a respiração do mesmo. Sobre este tipo de tortura as autoridades governamentais estabeleceram que não se poderia jogar água por mais de 40 segundos a cada vez.

Em meio a todas estas sessões de tortura, a vida seguia normal nesta estranha delegacia. A única novidade é que um delegado que acabara de ser designado para lá achou desaconselhável manter os vídeos dos procedimentos de tortura, e acabou por destruí-los. Assim foram parar no lixo nada menos que 92 filmagens de sessões de tortura.

As torturas foram tantas e tão cruéis que alguns parentes de presos e defensores dos direitos humanos se revoltaram e buscaram apoio junto ao Ministério Público e ao Poder Judiciário. Nada conseguiram, claro, já que todas as sessões de tortura feitas nesta estranha delegacia eram minuciosamente registradas e do conhecimento das autoridades, que as aprovavam – de forma tácita ou até mesmo expressa.

Esta estranha delegacia ainda existe, e só recentemente seus métodos começaram a ser revistos. Ela não está localizada em nenhum país atrasado da África, Ásia ou América Latina. Não, o horror que representa esta estranha delegacia não faz parte do cotidiano de nenhum destes povos supostamente bárbaros e atrasados.

Esta delegacia, conforme denunciou detalhadamente o jornal francês Le Monde, opera lá nos avançados e civilizados Estados Unidos da América. Funciona administrada pela CIA, ou “Central Intelligence Agency”, sob as vistas e aprovação dos avançados e civilizados Governo, Ministério Público e Poder Judiciário daquele avançado e civilizado país – que quase todos os anos critica o Brasil por violações aos direitos humanos, através de pomposos relatórios.

Fico a pensar se não seria o caso de recordarmos aquela exclamação de Bertrand Russell, segundo quem “a humanidade tem dupla moral: uma que prega mas não pratica, e outra que pratica mas não prega”.

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