Em busca da dignidade perdida

O tempo passa, e eis que lentamente aquele pedacinho de azulejo quebrado tende a perder a importância – com ele, a pequena mancha na toalha, o arranhão na mobília, o estofado esgarçado e a ferrugem nos metais. Reaja, ou brevemente estará habitando um pardieiro.

O tempo passa, e eis que lentamente aquele absurdo noticiário sobre mortes, assaltos, estupros e afins que lemos já durante a refeição matinal – aliás, haja estômago – vai virando rotina – uma rotina do absurdo.

O tempo passa, e eis que lentamente o vandalismo estampado pelas ruas e avenidas, do chão às paredes e muros, já não impressiona mais nossos sentidos – de forma mecânica, nos acostumamos a desviar o olhar, ou a olhar sem ver.

O tempo passa, e eis que lentamente os buracos nas ruas e calçadas já não nos causam dor – exceto quando algum parente idoso, com escassa vocação para cabrito, perece por complicações decorrentes de quedas.

O tempo passa, e eis que lentamente a cena pavorosa de crianças e idosos revirando latas de lixo em busca de comida sobre um solo tão rico já não nos toca tanto o coração ou induz indignação aguda – bovinamente, vamos nos acostumando a tal cenário!

O tempo passa, e eis que lentamente a impunidade dos maus já não nos causa tanto escândalo ou repulsa – afinal, algum filósofo de botequim proclamou que a vida sempre foi, é e será assim mesmo.

O tempo passa, e eis que lentamente o gemido dos doentes espalhados pelos corredores e filas, saúde e dignidade perdidas, já não faz vibrar com a mesma intensidade nossos tímpanos – e deste torpor só acordaremos quando lá também estivermos.

O tempo passa, e eis que lentamente a arrogância do Estado opressor agride a cada dia menos nossos sentimentos humanos – diante da falência das instituições, vamos nos acostumando carneiramente ao vilipêndio cotidiano do controle social.

O tempo passa, e eis que lentamente as cenas dos pavorosos acidentes causados pela péssima qualidade de nossas rodovias, agravada pela falta de ferrovias, já não nos causam tanto frio na espinha dorsal – ora, acidentes acontecem e, ademais, sequer trilhos produzimos neste país!

A verdade é que o tempo vai passando e carregando consigo, sem que o percebamos, algo que temos de muito sagrado: nossa dignidade de brasileiro, de cidadão – de gente, em uma expressão.

Dizem alguns, cinicamente, que “a vida é assim mesmo”. Será? No Japão, aquele país miserável, desprovido de recursos naturais, idosos andam com dignidade sobre calçadas lisas de cidades limpas. Em Cingapura, outro país paupérrimo, mulheres não precisam andar pelas ruas apressadamente, olhando para os lados nervosamente e agarradas aos seus pertences. Na Alemanha, outro país cujas riquezas naturais nem de longe se equiparam às nossas, as pessoas se deslocam em segurança através de ferrovias impecáveis. Na Coreia do Sul, igualmente um lugar pobre, não soube de escola que funcione sob a batuta do traficante da região.

Certo é que cada país tem suas virtudes e seus problemas – e fique isto muito claro. Porém, o de que aqui tratamos é do caso quase único de uma rotina tão absurda quanto humilhante sobre um dos solos mais abençoados deste planeta – um dos mais graves casos de perda de cidadania que conheço.

Dizem alguns que a culpa maior por este quadro de indignidade que vivemos é de nossas elites. Se isto for verdade, a elas a exclamação de Benjamim Franklin: “um lavrador de pé é maior que um fidalgo de joelhos”.

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