O maior dos males

A frase é de Bernard Shaw: “o maior dos males e o pior dos crimes é a pobreza”. Fiquei a pensar nela há poucos dias, lendo o noticiário mundial em torno da recente tragédia ocorrida no Rio de Janeiro, que ceifou umas duas centenas de vidas.

Chamou-me a atenção, especialmente, um texto do Diário de Notícias, de Portugal, que a seguir reproduzo: “A chuva castigou os mais pobres. Os mortos eram, em geral, pessoas sem emprego fixo, que viviam de biscates e não conseguiam residência na cidade asfaltada. Por isso, procuraram as favelas. Não há notícia de que nenhum membro das classes mais abastadas tenha morrido nesta tragédia. As classes média e alta tiveram apenas de lamentar a perda de alguns voos para outras cidades. De qualquer modo, a vida no Rio vai voltando aos poucos ao normal”.

Esta dura mas verdadeira notícia me trouxe à memória uma constatação divulgada também há poucos dias pela ONU, no sentido de que, em termos de saneamento básico, o Brasil chega a ficar atrás do Sudão! Assim disse o estudo: “Mesmo os indicadores do Brasil urbano são inferiores aos de países como Jamaica, República Dominicana e aos Territórios Palestinos Ocupados. Já o Brasil rural amarga índices africanos – o acesso a saneamento adequado nessas regiões do país é inferior ao registrado entre campesinos de nações imersas em conflitos internos, como Sudão e Afeganistão”.

Vamos ao significado disso: 53% dos brasileiros não contam com saneamento básico – e, no ritmo histórico dos investimentos, apenas o receberão no distante ano de 2122. Até lá, quantos outros filmes de terror assistiremos na vida real? Enquanto isso, a cada ano a União, os Estados e Municípios gastam em torno de R$ 1 bilhão só com propaganda – imagine os gastos com desperdícios e corrupção! Se o Morro do Bumba tivesse sido aquinhoado com pelo menos uma parte dessas verbas, muitos irmãos nossos ainda estariam vivos.

Diante das cenas pavorosas dos corpos mergulhados na lama, esta é uma realidade que choca. Porém ainda mais agudo é considerar que, a cada mês, 600 crianças brasileiras perdem a vida por conta do mesmo problema: a falta de saneamento básico! São três Morros do Bumba por mês! Ou, para alguns compreenderem, o equivalente a três aviões Boeing lotados de crianças caindo por mês! E que diferença faz um avião: se três deles caíssem a cada mês aqui no Brasil um escândalo teria se instalado, prisões teriam sido decretadas etc.

Mas, como todas estas mortes acontecem silenciosamente pelas favelas miseráveis do Brasil, tão bem representadas pelo Morro do Bumba, fica tudo por isso mesmo – aos poucos a vida vai voltando a uma “normalidade” absurda que só a crueldade e a indiferença explicam. O pior é que neste processo as vítimas viram culpadas – afinal, quem mandou elas irem morar nos morros? Sim, aqui no Brasil vítimas são sempre culpadas! As vítimas de crimes “deram bobeira”, as de acidentes de trânsito causados pelas vergonhosas estradas brasileiras “foram imprudentes”, as da corrupção “votaram mal”, e por este cínico caminho seguimos!

Tudo isto me faz recordar uma célebre entrevista feita com Margareth Thatcher, então Primeira-Ministra do Reino Unido, por ocasião dos 200 anos da Revolução Francesa. Perguntada sobre o que havia a celebrar, ela respondeu: “Nada. Só o que mudou é que após a Revolução Francesa a patuléia passou a chamar-se povo”.

Enviar por e-mail Imprimir