O mundo livre

Dia desses fiquei a lembrar do mundo que vi quando criança. Havia a “Cortina de Ferro”, ou o “Império do Mal”, no qual a repressão do Estado era impiedosa. Em contraste, o “lado de cá” era o “Mundo Livre”. Palavras como “privacidade”, “direitos humanos” e outras de idêntico valor, sagradas para o “lado de cá”, não existiam nos dicionários do “lado de lá”.

Recordo-me dos filmes daquela época. As cenas “do lado de lá” eram sempre cinzentas, pálidas, quase sem cor, mostradas sob trilhas sonoras capazes de deprimir o mais renitente dos otimistas. Já as do “lado de cá” destacavam-se pelo colorido intenso, compondo, com músicas sempre alegres, uma mensagem de amor pela liberdade.

Minha infância, assim como o “lado de lá” e o “lado de cá”, acabou. Trombeteia-se, sobre os escombros do Muro de Berlim, a vitória do “Mundo Livre”.

Enquanto todas estas coisas maravilhosas vão acontecendo, um jornalista da BBC, retornando para seu hotel de madrugada, teve a infeliz ideia de atravessar, fora da faixa, uma rua deserta da cidade de Adelaide, na Austrália – acabou submetido por nada menos que quatro zelosos policiais. Descobri que, naquele país, quem perturba um casamento pode acabar condenado a dois anos de prisão.

Nos EUA é proibido alimentar mendigos – quem o fizer passará uma temporada em alguma cela. Na França, em Calais, terá igual destino quem doar comida para imigrantes famintos – que sequer de banheiros dispõem, já que a polícia ameaçou carregar voluntários que instalavam alguns.

Na Europa, descobriram que as salas utilizadas pelas delegações da União Européia em Bruxelas estavam “grampeadas”. No Reino Unido, denunciou-se que 25% das informações recolhidas pelo governo sobre a população violam direitos constitucionais básicos. Nos EUA, descobriram que uma só agência governamental armazenou nada menos que 151 milhões de registros telefônicos em 2016.

Não nos esqueçamos, finalmente, daquela “cultura de segurança” que empurra-se pela goela abaixo da população, no mais das vezes para mascarar os pecados dos Estados. Foi assim que aquelas “sinistras barreiras policiais” do “lado de lá” se transformaram em “blitz” do “lado de cá” – cujos alvos, tanto “lá” como “cá”, são quase sempre pacatos cidadãos.

Que estranho! Será que, ao final das contas, o “Mundo Livre” perdeu?

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