O navio negreiro

Cenas de tortura da vida real – cortesia da moderna tecnologia. E lá estavam elas, registradas em vídeo por um indignado agente penitenciário. O ambiente era escuro, sinistro. A iluminá-lo tão-somente o facho de luz de uma lanterna, sempre à busca de alguma face assustada, dentre as tantas que se retorciam em um verdadeiro “ballet do horror”.

Do lado de cá uma matilha de torturadores, executando com energia e perfeição aquela ordem sinistra tão bem retratada por Castro Alves: “Fazei-os mais dançar!” Do lado de lá, “a multidão faminta cambaleia, e chora e dança ali. E ri-se a orquestra irônica, estridente. Qual um sonho dantesco as sombras voam! Gritos, maldições, preces ressoam! E ri-se Satanás!”

Inocentes ou culpados? Ao lado de cá, não importa: são apenas presos, coisas sem nome e sem rosto, desprovidas de alma. Que se lhes sejam antecipados os suplícios dos infernos, eis o que merecem.

A coreografia do horror há que ser perfeita. Cumpre sejam impressas com perfeição, naquelas paredes lúgubres, as sombras daqueles corpos desnudos se movimentando na penumbra.

Um deles, decerto vítima da fadiga, destoa do conjunto. Pior para todos – que se reinicie o tormento. E segue-se outra série. E nova falha. E nova série. Alguns gritos e ameaças – e reinicia-se o ciclo. E enquanto a humilhação não for completa, daquelas de beleza plástica impecável, saciados não estarão os algozes.

Ali ao lado, igualmente desnudos, porém sentados sobre o cimento frio, outros degredados tudo assistem, aguardando a hora de também eles se unirem a este baile dos infernos.

“Senhor Deus dos desgraçados! Dizei-me vós, Senhor Deus! Se é loucura… se é verdade. Tanto horror perante os céus?!”

As masmorras que servem de palco para o mal em sua essência mais pura não estão lá entre os gentios. Não projetam sombra sobre a Serra Leoa. Não habitam o passado distante daquela humanidade inculta. Não. Estão aqui, agora, em nosso meio. Suas sombras, físicas e morais, projetam-se sobre todos nós. Cada um de nós. E nada fazemos – afinal, recorde-se, são apenas presos!

O vexame daquelas sombras desnudas dançando no meio da noite eclipsa o pavilhão nacional, já chamado às falas em alguns dos maiores tribunais do planeta. Envergonha todo um país. Mancha indelevelmente a imagem de um estado. Mas nada disso importa – afinal, há que se divertir Incitatus!

E que dizer da covardia? Dos torturados que sequer veem a face dos seus algozes? Ofuscados pelo brilho que vem da escuridão, atordoados pelas vozes sem dono que dominam ambiente tão sinistro, somente resta obedecer, buscar dançar com mais beleza esta feia dança dos infernos.

Tão maior a perfeição da coreografia, menor a dignidade humana. Eleva-se o êxtase dos algozes ao custo daquilo que um ser humano tem – ou deveria ter – de mais sagrado: sua humanidade.

Lanço um novo olhar sobre aqueles torturados. E subitamente acorre-me um pensamento: onde, ali, os privilegiados pela riqueza? Onde aqueles que furtaram ao povo incontáveis fortunas, ao custo do sangue de tantos inocentes? Onde os que semeiam, com suas penas de ouro, a desgraça e a miséria sobre o solo de um país tão rico?

Não, ali não estão eles. Nunca estiveram. Talvez nunca venham a estar. Outro será o inferno a eles destinado – mas não o terreno. Este é exclusivo dos miseráveis. Que dancem, nus, pela noite escura, na cena medonha que é a derrota da raça humana.

“Que cena infame e vil… Meu Deus! Meu Deus! Que horror!”

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