O Saci-Pererê foi embora

Quase ninguém notou, mas o Saci-Pererê foi embora, acompanhado do Boitatá, do Curupira e da Mula-sem-Cabeça. Segundo consta, todos desiludidos após terem sido trocados por um tal de “Halloween”. Fazer o que, né?

E assim saíram eles, por este mundo afora, buscando uma cultura que os acolhesse. Soube que tiveram a ideia de ir a Hollywood, nos EUA, buscar alguma reciprocidade – porém, tudo o que conseguiram foi um emprego de porteiro de estúdio para a Mula-sem-Cabeça. Foi a última notícia que tive deles.

Mas mudemos de assunto: dia desses me falaram que um outro personagem tupiniquim, o “Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa”, está sob tratamento psicológico intenso – segundo consta, o dito cujo tem medo de virar folclore. Conversei com seu psicólogo, que me passou um retrato nada animador: “ele fica lá, olhando para o teto e repetindo sem parar que ‘um breve período de tempo, ocorrido no meio de uma atividade, para descanso, não é coffee-break, é intervalo’. Fala isso sem parar, o coitado”. Finalizou me relatando que meses de tratamento se perderam quando ele descobriu que no “English Dictionary” a palavra “reciprocidade” é bem pouco homenageada. “O que eu fiz de errado?”, passa agora os dias a repetir o pobre Dicionário!

Quem também procurou ajuda médica foi um velho conhecido, o “Botão Liga-Desliga”. Dizem alguns que ele está com mania de perseguição diante da aberta preferência nacional por um concorrente, o “Botão On-Off”. Já outros sustentam a tese de que ele está desesperado por não encontrar emprego em outros países, após ter sido demitido nestas terras.

Por falar em médicos e tratamentos, há alguns dias visitei um sanatório. Logo na entrada encontrei uma vaca, em estado catatônico – segundo os enfermeiros, ela sente-se discriminada por precisar de estrangeiros para entregar a brasileiros o leite que produz. Ao lado da vaca estavam um pé de cacau e outro de café – ambos tremendo, apavorados, padecendo do mesmo complexo de perda de identidade. Os dois me relataram o drama da senhora Nascente, que não para de chorar por conta de problema similar.

Impressionou-me vivamente, ao final da visita, uma senhora de nome “Empresa Brasileira” – absolutamente esquálida, com aspecto de sobrevivente de epidemia, ficava em um canto chorando e gritando, sem parar, que não quer virar transnacional…

Fui informado de que a equipe médica tem conversado muito com ela, descrevendo as belezas da globalização – mas sem grande sucesso. Aliás, de uns tempos para cá ela teve até alguma piora, passando a repetir sem parar o refrão “sem reciprocidade não há felicidade”.

Na saída, já na rua, fui abordado pelo Jeca Tatu. Parece incrível, mas nosso tão querido e folclórico personagem estava perdido, precisando de ajuda! Contou-me que, estando doente, telefonara para seu médico, marcando uma consulta. O problema era o endereço, um tal de “Health Medical Empire Center Business Convention & Bureau”. Algo revoltado, me disse duvidar que lá nos Estados Unidos o Buffalo Bill tenha o mesmo problema de comunicação.

Foi assim que retornei ao saudável convívio das ruas, longe de tantos traumas e distúrbios psicológicos. E eis que, subitamente, ocorreu-me de olhar com olhos de ver o país que temos construído – ou talvez desconstruído – nas últimas décadas. E subitamente lembrei-me do cineasta japonês Akira Kurosawa, segundo quem “em um mundo louco, apenas os loucos são sãos”.

Enviar por e-mail Imprimir