A soberania popular

A existência de um Estado de Direito é conquista das civilizações mais recentes, do século passado para cá. Antes disso os Príncipes tornavam lícito e ilícito o que lhes aprouvesse.

Atualmente o mundo jurídico contesta a teoria fundada por Jellinek da “autolimitação do Estado”, ou seja, que o próprio Estado limitaria os seus poderes em benefício de uma ordem jurídica, para a estruturação de um “Estado de Direito”. Essa teoria encontrou críticas acesas principalmente por parte dos defensores do “Estado social”, entendendo que só se limita uma força com outra força, que nesse caso, é a sociedade.

Apontam que todo o Estado tem a tendência para o despotismo, para abusos e para a prepotência. Para conter essa tendência natural é preciso que a sociedade se organize e exerça pressão, contrapondo força à força. O poder do Estado tem que ser contrabalançado pelo poder da Nação.

No Contrato Social, dizia Rousseau que “não se pode representar a soberania, pela mesma razão que não se pode aliená-la; consiste ela essencialmente na vontade geral, e a vontade não se representa; ou ela é a mesma, ou outra, e nisto não há meio; logo, os deputados do povo não são, nem podem ser, representantes seus: são comissários dele, e nada podem concluir decisivamente. É nula, nem é lei, aquela que o povo em peso não ratifica. Julga-se livre o povo inglês, e muito se engana, que o é só durante a eleição dos membros do Parlamento, finda a qual, ei-lo na escravidão”. (Capítulo XV).

Foi seguindo esse ensinamento que a Convenção francesa promulgou o Decreto de 21.9.1792, estabelecendo que “não pode haver Constituição que não seja aceita pelo povo”.

Na mesma trilha a Constituição de Filadélfia, 1787, obteve a consagradora aprovação da maioria dos Estados norte-americanos. Embora, originariamente, não tenha sido submetida à população.

Assim o povo passou a ser ouvido através do “plebiscito” e “referendum”. No plebiscito geralmente se submete à votação popular uma lei ou proposta de Lei. No referendum, a Constituição ou uma lei completa. Ou, às vezes, um Tratado.

Entretanto, prevaleceu a tese dos eternos inimigos da manifestação popular, que achavam ser impossível submeter-se ao povo uma lei complexa como a Constituição, e muito menos pretender sua participação na fase de elaboração. E essa “soberania” passou a ser exercida por intermédio dos “representantes do povo”. Foi-se de água abaixo a acalentada teoria de Rousseau impregnada de excelentes ideais, mas meramente utópica.

Se há alguns anos se submetia a Constituição, total ou parcialmente, a “referendum”, nem isso hoje se faz mais. Alguns países – como o nosso – cansados de constituições outorgadas e impostas de cima para baixo por ditadores e governos militares, ocasionalmente limitam-se a admitir que o povo eleja representantes destinados especificamente à elaboração da Carta Constitucional. Na de 1988, nem isso houve. O Congresso Nacional era constituído de Senadores em parte provindos da legislatura anterior, que lá permaneceram no curso de seu mandato; e os deputados e senadores eleitos assumiramm para elaborar a Constituição e prosseguirem legislando – eram simultaneamente poder constituinte e poder constituído.

Não houve, portanto, constituintes formal e legitimamente delegados nem qualquer espécie de “consulta popular”, nem por plebiscito, nem por referendum. Nem sequer a aprovação indireta, também adotada ocasionalmente, nas assembléias estaduais.

Toda Constituição, entretanto -, e a nossa não seria exceção – vai buscar nos costumes, na religião, na moral do povo, os seus fundamentos básicos (substrato social). Hoje há também a influência da opinião pública mundial, de Tratados e Convenções internacionais, que consubstanciam obrigações livremente assumidas, e a integração do nosso país à chamada “comunidade jurídica internacional”.

Por isso, mais importante do que todo e qualquer texto constitucional, é o respeito às origens, ao passado e às tradições do povo. Sem isso, surgem as terríveis contradições em que estamos mergulhados, gerando crises e mais crises, dificultando ou mesmo impedindo o desenvolvimento econômico.

Freeman mostrou no seu pequeno livro “O crescimento da Constituição inglesa” que essa Constituição “nunca foi feita; que nunca nas grandes lutas políticas da Inglaterra a voz da nação reclamou novas leis, mas só o melhor cumprimento das leis existentes; que a vida, a alma da Lei inglesa foi sempre o precedente”.

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