Crimes civis e penais

Quando uma pessoa, agindo contrariamente à lei, faz um dano a outra, surgem, na mesma hora, duas espécies de responsabilidade: civil e criminal. Se violou um contrato ou descumpriu uma obrigação assumida, responde pelos prejuízos causados. Se furtou, matou, causou lesão corporal, agrediu, cometeu fraude, passou cheque sem fundos, etc., é responsável civil e criminalmente.

A reparação civil pode assumir várias formas: multa, indenização, retorno ao estado anterior, compensação, perdas e danos, lucros cessantes, etc.

Essa reparação do dano exclusivamente nas áreas do Direito Civil, Direito Administrativo, Direito Constitucional ou Direito do Trabalho, na realidade não deixa de ser uma pena. E a pena civil é muitas vezes mais grave, mais rigorosa e mais onerosa do que a pena penal. Assim, por exemplo, entre pegar uns dois anos de cadeia (pena penal) e perder o emprego (pena administrativa), o funcionário condenado preferirá, muitas vezes, ficar preso por dois anos (e até mais), do que perder seu salário e suas garantias de emprego e aposentadoria pelo resto da vida.

O mesmo se pode dizer nos casos de multas. Há multas administrativas, penais e civis. Se o cidadão infringe a Lei do Trânsito, sujeita-se a multa; se pratica infrações trabalhistas, tem que pagar multa; se viola um contrato de construção ou de prestação de serviços, sujeita-se ao pagamento de uma multa que muitas vezes vai à casa de milhões de reais.

Verifica-se, entretanto, que o valor dessas multas ultrapassa de muito o valor das multas resultantes de processos penais.

Assim, por exemplo, nesse rol de contradições, podemos citar que, se um cidadão desrespeita a Lei das Posturas Municipais ou a Lei Ambiental, pode ter seu estabelecimento comercial fechado, ou sua fábrica interditada, além de ter que pagar multas milionárias, o que, sem dúvida, lhe acarretará prejuízos incalculáveis, que às vezes arruinarão seu negócio. Já se matar um homem, ou dezenas de homens de uma só vez (como no caso do Bateau Mouche), ficará solto mediante o pagamento de uma pequena multa. Basta dizer que as fianças, que dão o direito de aguardar em liberdade o andamento do processo até sentença final passada em julgado, continuam em níveis muito baixos, na base do cruzeiro antigo.

Em muitos países do mundo, com os Estados Unidos à frente, a grande maioria de crimes depende de queixa do ofendido. Se não for oferecida a queixa, não se instaura o processo – nem na Polícia, nem na Justiça. Por isso costuma haver a “composição”, ou seja, a vítima recebe uma quantia, a título de indenização, para não apresentar queixa e considerar o caso encerrado. Se o cidadão, por exemplo, tem seu carro furtado e o ladrão é preso, a vítima concorda em receber o carro de volta, e mais uma determinada quantia, para não oferecer a queixa. É lógico que muito mais interessante para a vítima é receber seu bem de volta, e mais algum dinheiro para se ressarcir dos eventuais gastos e das amolações naturais, do que ver o criminoso respondendo a inquérito e processo, que muitas vezes prescreve nas escrivanias da Justiça, ou acaba deixando o acusado preso, ocasionando apenas mais prejuízos ao Estado (para mantê-lo e alojá-lo).

Aqui no Brasil a grande maioria dos crimes é de “ação pública incondicionada”, ou seja, entende-se que no caso de um crime foi ofendida a sociedade, e não apenas a vítima, e que, portanto, é obrigatória a instauração de uma ação penal por parte do Ministério Público. Poucos são os crimes de ação privada, ou seja, dependentes de queixa do agredido.

Essas reflexões nos vêm à mente quando assistimos inúmeras campanhas visando a esvaziar as prisões.

Ninguém fala, entretanto, que o aspecto mais importante de uma política criminal correta e inteligente consiste exatamente em evitar o crime. E quem diz que um fato é crime e estabelece as penas, é o legislador. Antigamente havia os crimes contra a religião, e assim milhares de pessoas iam para a cadeia ou eram condenadas à morte porque tinham comido carne na quaresma, ou porque mantinham relações sexuais com pessoas do mesmo sexo, ou com cachorros, galinhas, patos, perus, cabras, gatos, etc.

Da mesma forma, havia prisão por dívidas: se o cidadão não pagava em dia seus compromissos – nota promissória, duplicata, etc. – ou se o inquilino não pagasse pontualmente o aluguel, cabia decreto de prisão. As prisões viviam abarrotadas de maus pagadores, chamados atualmente, eufemisticamente, de “inadimplentes”.

Hoje, tão-só e exclusivamente por decisão do legislador, nada disso é crime, e as cadeias se esvaziaram dessas espécies de “criminosos”.

Aqui no nosso País, entretanto, as chamadas penas alternativas, introduzidas na legislação penal há cerca de 14 anos, continuam inaplicáveis, ou muito pouco aplicáveis, porque ainda predomina uma mentalidade prisional. Se o marido briga com a mulher, houve-se logo o grito: “só cadeia”. Por qualquer dá lá aquela palha, o ofendido vocifera: “é caso de cadeia”. Quer-se prender todo mundo por tudo, e quando o Estado não aguenta mais sustentar tanta gente nas cadeias, nem mantê-las atrás das grades, sugere-se simplesmente soltar os condenados.

Enquanto a tendência no Direito Penal moderno é a da atenuação das penas, descriminalização de condutas e redução dos prazos prescricionais, o que aliás tem assinalado seu curso histórico desde o século do Iluminismo, a Constituição de 1988 marchou, inegavelmente, em sentido contrário, introduzindo a figura dos crimes imprescritíveis (que nunca existiram no nosso País), e inafiançáveis.

Cremos que seria mais prático, mais racional, mais lógico, e muito mais simples, uma ampla revisão de nossa legislação penal, transformando-se grande parte, ou até mesmo a maioria dos crimes, em crimes de ação privada, reparáveis mediante indenização ou por outros meios previstos na área civil, ou seja, fora da legislação penal.

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