Da justiça

O grande jusfilósofo inglês, Jeremy Bentham, expos a teoria dos círculos concêntricos, considerando a sociedade e todos os fenômenos sociais dentro de um grande círculo, que seria a Religião. Dentro desse grande círculo, haveria um círculo menor – a moral. E, dentro desse círculo da moral, haveria um outro círculo menor – os costumes. Desse conjunto – religião, moral, costumes – sai a ética social. E, da ética social, saem as Leis. Com efeito, a Lei é definida como “o mínimo ético exigível”.

Tem-se dito com razão que a religião foi a primeira instituição da humanidade. Realmente, bem antes dos filósofos, desde a origem das sociedades, as religiões têm exprimido, em seus vários símbolos, em seus mistérios e seus mandamentos, as idéias morais mais elevadas, a distinção da vida espiritual e da vida animal, o dever de lutar contra as paixões, de se libertar da tirania do corpo pela oração, pela austeridade, a fim de se aproximar da divindade.

“A alma, no sacrifício simbólico oferecido a Ormuz, é colocada em liberdade, por sua vitória sobre a matéria… Aproximar da perfectibilidade dos deuses, em se despojando sucessivamente do que em nós é humano, em se tornando senhor absoluto de seus sentidos e suas paixões, tornar-se, enfim, semelhante aos próprios deuses”, tal tem sido o objetivo que era proposto aos inventores dos mistérios.

Le Bon pretendeu que, aos olhos do legislador sagrado dos antigos indus “com exceção do adultério, todos os pecados da carne têm pouca importância… que todas as leis morais de Manu reenviam às prescrições religiosas”.

Para confirmar essa afirmativa, a citação dos seguintes textos será suficiente e decisiva: “Que o rei faça, noite e dia, todos os seus esforços para dominar seus órgãos; porque aquele que dirige seus órgãos é o único capaz de submeter os povos à sua autoridade. Que ele evite, com o maior cuidado, os vícios que conduzem a um fim infeliz, entre os quais dez nascem do amor e do prazer… a caça, o jogo, o sono durante o dia, a maledicência, as mulheres, a embriaguês, o canto, a dança, a música instrumental e as viagens inúteis são as dez espécies de vícios que nascem do amor e do prazer. O vício e a morte sendo comparados, o vício foi declarado a coisa mais horrível” (VII, 44).

No Livro VI está prescrito ao anacoreta não viver senão de raízes, de se educar em austeridade cada vez mais rigorosas, “a fim de se enxugar de sua substância corporal” , de evitar toda procura dum prazer sensual, de observar a castidade, “aspirando à união divina”, aguardando com resignação a dissolução de seu corpo”.

“Meditando com prazer sobre a alma suprema, seguro, não tendo necessidade de nenhuma outra coisa, inacessível a todo desejo sensual, sem outra associação além de sua alma, que se vive aqui em baixo aguardando a beatitude eterna. Em martirizando seus órgãos, em renunciando a toda espécie de afeição ou de ódio, em evitando fazer mal às criaturas, ele se prepara para a imortalidade. Que ele não deseja a morte, que não deseja a vida; aguarda o momento fixado para si, como o empregado doméstico aguarda seu salário”. Manu prescreve, em outra parte, o perdão das injúrias, a humildade, a bondade, a caridade, a justiça, “o único que acompanha os homens após a morte”.

O dever de lutar contra suas paixões, de libertar a alma da tirania do corpo, não era menos claramente compreendido pelos antigos egípcios: “A inteligência, diziam eles, entrada numa alma humana, pretende arrancá-la da tirania do corpo e elevá-la até si, mas, como ela está despojada de suas vestes de fogo, não é bastante forte para reduzir a nada as paixões e os desejos grosseiros, que a carne nos inspira… Constantemente o homem privado da “faisca divina” não vive mais senão para a intriga, e se abaixa aos animais”.

Numa passagem dos livros atribuídos a Hermes, está dito também que “a alma livrada da prisão do corpo, quando é submetida aos preceitos da virtude e da piedade, torna-se certamente espírito”. Quando os povos antigos ressalvam assim a luta do espírito contra o corpo, ninguém se admiraria lendo Platão falando “desse túmulo que chamamos nosso corpo; que arrastamos conosco como a ostra sua prisão”, ou São Paulo escrevendo: “quem me libertará desse corpo de morte”, ou Sêneca, dizendo que “este corpo não é um domicílio fixo, mas uma hospedaria, um hotel dum dia”.

Eis aí por que, desde a mais remota antiguidade a Justiça é sinônimo de retidão; o homem justo é o homem reto. Nas línguas antigas, como nas línguas modernas, a mesma palavra significa direito no físico e na moral. Junto aos povos primitivos, como junto às nações nodernas a via reta é a justiça; a via oblíqua, a injustiça.

Na Bíblia, o homem justo é aquele que tem o coração reto: “Considerai, eu vos suplico, se jamais um inocente se perdeu ou se aqueles que tinham o coração reto foram exterminados” (Jó, IV, 7). “Se vós caminhais puro e reto, Ele despertará logo para vos ajudar” (Jó, VIII, 6).

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