Das Emendas

Não resta a menor dúvida que a coisa mais importante, no Direito escrito, está na definição clara e inconfundível dos termos, das palavras e das expressões. O uso correto da língua oferece segurança jurídica, tanto para o Estado, como para os cidadãos, e, além disso, facilita os juízes e tribunais na interpretação das controvérsias.

Em muitos países do mundo vigora o direito costumeiro. Não têm sequer Constituição escrita. Preferem se orientarem pelos usos e costumes do povo, ou, como dizem, por aquilo que se acha sedimentado no espírito das multidões.

Nos Estados Unidos, por exemplo, o que se chama de Constituição não passa de uma simples e sucinta declaração de princípios. E a partir desses princípios básicos extrai-se toda a legislação.

Aqui no Brasil, ao contrário, preferimos adotar uma Constitução detalhista, minuciosa, na qual, naturalmente, o emprego de qualquer palavra duvidosa pode ensejar várias interpretações.

Dentro dessa linha de raciocínio, nossas Constituições, todas elas, inclusive a de 1988, nunca se preocuparam em fixar descontos em vencimentos de funcionários para fins previdenciários, partindo de um raciocínio muito simples. Pois, no caso de qualquer pagamento do funcionário ao Governo, não estaria havendo nada mais nada menos do que um simples jogo de contabilidade ou mera atividade burocrática. O funcionário estaria pagando ao Governo com o dinheiro recebido do próprio Governo.

Acontece que nossos legisladores, no afã patriótico de realizar reformas inadiáveis, indispensáveis, imprescritíveis e imperiosas na nossa Constituição, inovaram, editando a Emenda nº 3, aos 17 de março de 1993, introduzindo novidades formidáveis no nosso mundo jurídico.

Assim, temos:

  1. “As aposentadorias e pensões dos servidores públicos federais serão custeadas com recursos provenientes da União e das contribuições dos servidores, na forma da lei” (art. 1º).

Com isso ficou autorizada a edição de uma futura norma estabelecendo o desconto da contribuição, em folha. Tal desconto, na realidade não passa de mera simulação para encobrir uma verdadeira redução de vencimentos.

  1. Essa mesma emenda veio incluir na competência do Supremo Tribunal Federal julgar a “ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal”.

Isso, em poucas palavras, quer dizer o seguinte: quando é promulgada uma Lei, pode ser arguida a sua inconstitucionalidade pelas partes supostamente prejudicadas.

Nunca ninguém se interessou em dar ao Governo o direito de pedir a declaração de constitucionalidade por duas razões: em primeiro lugar, porque todo ato do Governo goza da presunção de constitucionalidade; e, em segundo lugar, porque é o próprio Governo que coloca a Lei em execução.

Agora surgiu uma outra solução genial, fruto, naturalmente, de audaciosa capacidade criadora dos nossos legisladores – antes que alguém se sinta prejudicado e vá bater às portas do Supremo pedindo a declaração de inconstitucinalidade, é o próprio Governo que se antecipa e pede seja declarada a constitucionalidade “da lei ou ato normativo federal”.

Ora, se o Governo tinha alguma dúvida sobre a constitucionalidade de uma Lei seria muito mais lógico e interessante que não a promulgasse, ou os legisladores antes de aprová-la, mandassem o projeto para exame por parte de algum jurista, órgão jurídico especializado (OAB, por exemplo), ou, talvez, o próprio Supremo. Isso evitaria muitos transtornos e perplexidades.

Mas a emenda vai ainda mais longe, ao prescrever taxativamente que “a ação declaratória de constitucionalidade poderá ser proposta pelo Presidente da República, pela Mesa do Senado Federal, pela Mesa da Câmara dos Deputados ou pelo Procurador Geral da República”. Ou seja: aqueles mesmos responsáveis pela elaboração, aprovação, votação e promulgação da Lei poderão bater às portas do Supremo, numa ação própria, pedindo-lhe que diga, manifeste, proclame e anuncie que essa Lei é constitucional.

Tudo leva a crer que, tanto num como no outro caso, houve apenas e tão-somente, o emprego da mesma palavra com sentidos diferentes. Numa época em que já está sobejamente provado, como se vê nos Estados Unidos, Inglaterra e outros povos de origem anglo-saxônica, que é perfeitamente possível organizar-se e estruturar-se um sistema legal sem necessidade do direito escrito.

Custa portanto entender-se a extraordinária importância dessa emenda, conforme tão amplamente noticiado.

No dia 5 de outubro de 1988 o Congresso Nacional reuniu-se sob a presidência do saudoso Deputado Ulysses Guimarães para promulgar a nova Constituição do Brasil.

O momento era de grande euforia nacional. Por determinação da Igreja Católica, os sinos bimbalharam em todo o País no momento em que, sob o comando do Presidente do Supremo Tribunal Federal, em sessão solene, proclamava-se aquilo que se dizia ser a vontade nacional, consubstanciada na Carta Magna que a partir daquele momento entrava em vigor.

No ato da proclamação o Deputado Ulysses Guimarães, ao apor sua assinatura, levanta a nova Constituição com os dois braços e diz que estava assinando a Constituição-cidadã, nome sob a qual passou a ser designada.

Efetivamente, nunca houve no Direito Constitucional brasileiro uma Constituição em que se notasse tanta preocupação com os direitos dos mais fracos, desvalidos e oprimidos.

Acontece, no entanto, que logo em seguida poderosas forças reacionárias iniciaram violento e pertinaz trabalho de demolição, e, removendo pedra sobre pedra, parece, a esta altura, que de todas as belíssimas intenções do Deputado Ulysses Guimarães e seus seguidores, pouco restou.

Se não, vejamos:

  1. A Constituição, em seu art. 40, dava direito à aposentadoria nos casos de “invalidez permanente, sendo os proventos integrais quando decorrentes de acidente em serviço, moléstia profissional ou doença grave, contagiosa ou incurável, especificadas em lei e proporcionais nos demais casos”. Esse direito, como se vê, era amplo, e considerava apenas e tão-somente o tempo de serviço.

Agora, a emenda constitucional nº 20 deu nova redação ao art. 40, e passou a considerar os proventos proporcionais ao “tempo de contribuição”. Como a grande maioria dos funcionários e trabalhadores brasileiros logo no início de sua vida exerce inúmeras das atividades chamadas de “informais”, sem carteira assinada e sem qualquer contribuição previdenciária, não é muito difícil imaginar-se o retrocesso havido.

  1. O § 2º do art. 40 dava direito de aposentadoria aos ocupantes de “cargos ou empregos temporários”. Com isso o Estado dava cobertura àqueles que muitas vezes trabalham vários anos em cargos públicos, sem serem efetivos nem efetivados.

Pela emenda constitucional nº 20 passaram a ter direito à aposentadoria apenas os funcionários efetivos.

  1. O art. 40 da Constituição-cidadã dava direito de aposentadoria, em todas as circunstâncias, contando-se o “tempo de serviço”. Na forma da emenda nº 20, passou-se a considerar única e exclusivamente o “tempo de contribuição”.

Por conseguinte, a partir de agora os velhos, inválidos, deficientes e incapazes que, embora tenham trabalhado, não tiverem suficiente tempo de contribuição, se sujeitarão a viver às custas de parentes ou da caridade pública.

A Constituição-cidadã, conforme se lê em seu “preâmbulo” pensou em instituir um “estado democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais”.

Ora, todos os cidadãos brasileiros, quer direta ou indiretamente, contribuem para os cofres públicos através do pagamento de impostos. O dinheiro da Fazenda Pública é a “res publica”, ou seja, “coisa pública”. O Governo, quando realiza uma obra ou efetua qualquer pagamento ao povo está apenas devolvendo um pouco daquele tanto que dele retirou. Se o Estado cobra algo do funcionário, na realidade não existe pagamento algum – há apenas um mero jogo de contabilidade: o funcionário recebe o dinheiro do Estado para pagar ao próprio Estado.

Como se vê, os elevados objetivos dos constituintes, pretendendo a criação de um “estado social de direito”, parece que foram escandalosamente frustrados. Porque nos países onde vige efetivamente uma “democracia social” o cidadão é segurado pelo Estado contra o desemprego, as doenças, a incapacidade laboral e até mesmo contra acidentes de trânsito – em outras palavras, o Estado protege-o de todos os riscos sociais, ou seja, dos riscos decorrentes da vida em sociedade. A preocupação central do Estado é proporcionar educação, saúde, segurança (no sentido amplo, entendendo-se no conceito, naturalmente a “segurança social”).

Donde se conclui que, como tudo indica, logo após a promulgação da Constituição-cidadã passamos a caminhar em sentido diametralmente oposto, numa vitória expressiva e incontestável da reação, isto é, daquelas mesmas forças que se opuseram radicalmente a esses auspiciosos projetos aprovados pela Constituinte.

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