Herodes era brasileiro?

Hoje faremos um exercício mental. Vamos começar pensando em um daqueles grandes aviões a jato que percorrem todo o planeta, com capacidade para cerca de 300 passageiros.

Em seguida, imagine um desses aviões carregado exclusivamente com crianças de férias rumo à Disneylândia. Suponha, agora, que este avião sofra um acidente, vitimando todos os pimpolhos a bordo – dá para pensar em alguma cena mais triste?

Um acidente desses causaria comoção mundial. Inquéritos rigorosos seriam abertos, indenizações milionárias seriam pagas aos familiares e o assunto ocuparia os noticiários durante anos a fio.

Mas prossigamos em nosso exercício de imaginação. Tente pensar no que aconteceria se caíssem, ao longo de um único ano, 29 desses aviões. Com toda a certeza o tráfego aéreo do Brasil seria fechado, autoridades seriam exoneradas, alguém iria para a cadeia e o Brasil teria muito trabalho para provar que é um país responsável.

Considere, em seguida, neste fascinante passeio pelo mundo dos números, que apenas em 2010 o Brasil perdeu, assassinadas, nada menos que 8.686 crianças e adolescentes – o equivalente a 29 aviões de passageiros lotados. Curiosamente, no entanto, quase não se falou nisso! Que diferença faz um avião!

Dia desses li que entre 1981 e 2010 176.044 seres humanos com menos de 19 anos de idade foram vítimas de homicídio aqui no Brasil – 90% deles crianças. Voltei à calculadora. Descobri que matou-se o equivalente a quase 587 aviões de passageiros lotados. Fiz mais algumas contas e constatei que este quadro equivale à queda de uns 65 aviões a cada ano – todos lotados, claro.

Há quem diga serem estes vestígios de um passado remoto. Marcas de um Brasil que se moderniza mais a cada dia. Poeira histórica deixada pela caminhada de um povo que marcha resoluto, rumo ao avanço e à civilidade. Discordo. E assim porque a situação só tem piorado.

Vamos a mais alguns números: em 1980 a taxa de homicídios na faixa etária entre zero e 19 anos era de 3,1 para cada grupo de 100.000 pessoas. Em 1990, até onde pesquisei, este índice aumentou para 7,7. No ano 2000 avançamos para 11,9. E em 2010 atingimos o recorde de 13,8. Decidi fazer mais algumas contas, e descobri que entre 1980 e 2010 este índice de homicídios aumentou cerca de 376%. Tradução: tudo indica que o problema só tem piorado – e, o que é pior, sob o nosso silêncio! E que diferença faz um avião…

Seria este um problema mundial? Após uma pequena pesquisa constatei que não. No ano de 2008 nossa taxa de homicídios na faixa etária entre 0 e 19 anos de idade era de precisos 13%. Pois bem: em uma relação de 92 países, só “perdemos” para El Salvador (18%), Venezuela (15,5%) e Trinidad e Tobago (14,3%). Alcançamos um pouco honroso quarto lugar.

Nossa vergonha é ainda maior quando perdemos até para regiões notoriamente conflagradas (Iraque, com 5,6%), palco de guerras pelo controle do tráfico de entorpecentes (México, com 2,9%) e cenário de atos terroristas (Irlanda do Norte, com 1,7%).

Diante deste quadro, transcrevo o alerta de um representante da Anistia Internacional: “o Brasil convive, tragicamente, com uma espécie de “epidemia de indiferença”, quase cumplicidade de grande parcela da sociedade, com uma situação que deveria estar sendo tratada como uma verdadeira calamidade social. É como se estivéssemos dizendo, como sociedade e governo, que o destino desses jovens já estava traçado”. É isso aí. Vai ver Herodes era brasileiro!

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