Legislação democrática

Já dizia Savigny, naqueles saudosos tempos, que o legislador não faz a Lei, mas apenas dá-lhe forma, porque ela, na realidade, é preexistente, ou seja, antes de existir no papel, já existia no espírito do povo, na consciência tranquila das multidões.

A Lei, assim, não é fruto do arbítrio do legislador. Nasce – isto sim – apenas e tão-somente do seu poder de observação dos fenômenos sociais, políticos e econômicos.

Por esse motivo a Constituição, a Lei Maior de um povo, não precisa ser escrita. Acima da Constituição está a lei natural, que muitas vezes se opõe ao que consta nas leis fixas e codificadas.

Muitos países, convindo destacar Estados Unidos e Inglaterra por sua particular importância, preferem atender aos anseios da tradição histórica a atender aos rigores das limitações constitucionais.

Na Inglaterra há uma Constituição predominantemente costumeira, ou seja, não escrita, cujas normas fazem parte da própria filosofia daquele povo, e são sempre incorporadas à legislação ordinária, em contínua adaptação. Nos Estados Unidos há uma Constituição escrita, que data de 17 de setembro de 1787, mas muito resumida, constante – em sua maior parte – de princípios genéricos, a partir dos quais passa a ser elaborada a legislação ordinária, em mutação constante, acompanhando a realidade social, histórica.

Por isso, os doutrinadores falam na existência de duas Constituições: a Constituição “real” e a Constituição “formal”. Constituição formal é aquela que está escrita. Constituição real é a existe na alma do povo, resultado de suas tradições e daquilo que se convencionou chamar de “pacto social”.

Entendem Bachof e seus seguidores que a competência da Corte Constitucional não é apenas velar pela Constituição formal, mas, sobretudo, pela preservação da “Constituição real”. Assim, qualquer emenda que venha a afetar as “normas” éticas reinantes na sociedade ou interferir no equilíbrio entre os “fatores reais de poder” é inconstitucional.

E ensina Maurice Hauriou: “Vamos mais longe: a lei constitucional mesma não deve escapar ao controle do juiz – há ocasiões em que o controle poderia ser exercido sobre ela. Por exemplo, no fundo, uma emenda à Constituição estaria em contradição com essa “legitimidade constitucional” de que falamos incessantemente, que está acima da superlegalidade mesma, porque se compõe de princípios, e os princípios estão acima dos textos”.

Dentro dessa linha de raciocínios vemos que desde o século 18 firmou-se o princípio de que a divisão de Poderes exprime, por si só, as feições de uma Constituição liberal, democrática e autêntica. Proclamava a “Declaração dos Direitos do Homem”, em 1789, na Revolução Francesa, que “toda sociedade onde não esteja assegurada a garantia dos direitos, nem determinada a separação dos Poderes, não tem Constituição” (art. 16).

Os revolucionários se inspiraram na teoria de Montesquieu, que defendia uma “separação de Poderes” dentro do Estado, e não apenas uma “separação de atividades”, como existia. E dizia que, “quando na mesma pessoa, ou no mesmo corpo de magistratura, o poder legislativo está reunido no poder executivo, não há liberdade, porque se pode temer que o monarca ou o Senado faça leis tirânicas para executá-las tiranicamente”. “Não há ainda liberdade, se o poder de julgar não está separado do poder legislativo e do executivo. Se estivesse junto ao poder legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, porque o juiz seria legislador. Se estivesse junto ao poder executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor. Tudo estaria perdido se o mesmo homem ou o mesmo corpo dos principais ou dos nobres, ou do povo, exercesse esses três poderes: o de fazer as leis; o de executar as resoluções públicas; e o de julgar os crimes ou as diferenças entre os particulares”.

Tudo isso, que são rudimentos de Direito Constitucional, nos vem à memória quando observamos que, pelo simples fato de uma decisão do Supremo contrariar pontos de vista de membros do Poder Legislativo, deputados e senadores falam logo, de plano, em aprovarem uma emenda ampliando os poderes do Legislativo e restringindo os do Judiciário.

Vale relembrar que o poder do legislador de alterar uma Constituição não é nem nunca foi absoluto. É limitado pelas chamadas “cláusulas pétreas” (dentre as quais acha-se a tripartição dos Poderes), e, sobretudo, pelos fundamentos constitucionais básicos, ou seja, pelos princípios em que se apóia a “Constituição real”.

Essa é a Lei, e, como proclamava Rui, “fora da Lei não há salvação”.

Enviar por e-mail Imprimir