O caso Biggs

Há, no mundo atual, duas espécies de Direito Penal: o autoritário e o liberal. O Direito Penal autoritário tem como idéia central: “Nenhum crime sem pena”, enquanto o Direito Penal liberal baseia-se no princípio: “Nenhuma pena sem crime”.

Isto, em poucas palavras, significa mais ou menos o seguinte: nos países em que vige o Direito Penal autoritário todo e qualquer crime tem que ser punido. Entendem seus doutrinadores e ideólogos que se houver um crime e não for descoberto seu autor, não sendo punindo ninguém, a população vai perdendo o respeito à ordem jurídica, enfraquece-se o Estado, e a sociedade, como um todo, é abalada. Para eles, alguém tem que ser punido, mesmo que seja um inocente (sugerem a condenação de alguma pessoa que já possua antecedentes criminais, de comportamento desviado, ou comprovadas tendências para a criminalidade).

É muito comum nos Estados Unidos e na Inglaterra, por exemplo, que pessoas condenadas à prisão perpétua, depois de passarem muitos anos na penitenciária, terem sua inocência reconhecida. Ou mesmo réus condenados à morte, serem inocentados após a execução da sentença. Ou liberados após passarem muitos anos no “corredor da morte”.

A literatura especializada conta o caso de um Juiz inglês que, ao condenar um cidadão acusado de ter roubado um cavalo, e que desesperado protestava inocência, lhe respondeu: “Você não está sendo condenado por ter roubado um cavalo; está sendo condenado para que outros cavalos não sejam roubados”.

Sob essa mesma filosofia de radicalismo penal e intolerância, deparamos em notícias bem recentes da imprensa:

– “Um homem na Província de Sichuan, na China, foi executado por roubar 14 vacas. Outros dois foram condenados à morte pelo roubo de um carro, que venderam por mil e duzentos dólares” (Estado de São Paulo, 27.8.97, pág. A14).

– “A cidade americana de Portsmouth, em New Hampshire, está revoltada. O tribunal local condenou à morte o cão labrador Prince. Motivo: ele foi flagrado vagando sozinho pela cidade. Desde que matou um galo em maio do ano passado, Prince estava proibido de andar desacompanhado. A infração não foi perdoada pelo juiz, mas o advogado do cachorro, Peter Marsh, conseguiu protelar a sentença da execução” (Revista Isto É, nº 1428, de 12.2.97).

– Há pouco tempo a televisão noticiou e expôs o caso de um garoto de 12 anos, condenado, na Inglaterra, à prisão perpétua.

Já nos países, como o nosso, em que se adota o chamado direito penal liberal, não existe essa preocupação obsessiva em se punir o crime. Aqui não existe pena de morte, nem de prisão perpétua, nem tampouco são condenados menores e animais. A pedra angular do nosso Direito Penal, consagrada em princípio constitucional, é a presunção de inocência. O acusado, que tem que ser homem e maior de 18 anos, só pode ser condenado após provada cabalmente sua culpa, através processo legal, em que lhe é oferecida ampla defesa.

Isto tudo nos vem à mente quando nos deparamos com o caso Ronald Biggs. Trata-se de um indivíduo que cometeu um roubo na Inglaterra há cerca de trinta anos.

Esse crime, no nosso país, já estaria prescrito há dez anos, pois o tempo máximo de prescrição previsto na nossa legislação penal é vinte anos. Perdeu, então, sua punibilidade. Inexistindo punibilidade, não há crime. Portanto, o fato deixou de ser crime. O processo respectivo estaria arquivado, não podendo sequer ser reaberto. Com a prescrição o acusado readquire a primariedade – não cometeu crime algum.

Entretanto, por incrível que pareça, acaba de chegar no nosso País um pedido de extradição. A Inglaterra, uma das nações mais cultas do mundo, chamada por Rui Barbosa, a “Pátria dos Direitos Humanos”, não esmorece nem se cansa na perseguição implacável ao seu filho, que, aliás, já se mostrou plenamente reabilitado, porque durante todo esse tempo em que se encontra no Brasil, ao que consta, não voltou a delinquir.

Diante de um quadro desses, o que nos causa tristeza é que nesse passar de anos e séculos, o Direito Penal anglo-saxônico tem sido sempre o mesmo: inflexível e intolerante. Não mostra qualquer tendência para a liberalização.

Mas, conosco acontece exatamente o contrário: nosso Direito Penal vai dia a dia se transformando para pior – em vez de evoluir, involui para o modelo autoritário. Tanto assim que a Constituição de 88 criou crimes imprescritíveis, inafiançáveis, e, depois de sua promulgação surgiu a prisão por dívidas, a prisão temporária, a execução da pena exclusivamente sob regime fechado, sem direito a livramento condicional, etc.

E, ao que tudo indica, parece que não há perigo de melhorar.

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