O Zé-Povinho: culpado ou vítima?

Há uma conhecida piada segundo a qual, quando da Criação, o Brasil teria sido privilegiado com riquezas imensas e poupado dos desastres naturais que atingem outros países para compensar o “Zé-Povinho” que seria colocado aqui. De tão repetida, esta piada virou verdade aceita: a culpa pelo atraso do Brasil é do “Zé-Povinho”! Será? Que tal darmos uma olhada na vida de João Valjão, um típico brasileiro?

João é morador de um barraco situado em uma das mais de 3.100 favelas espalhadas pelo Brasil. Lá, como em cerca de 60% dos domicílios brasileiros, não há rede de esgoto. Por conta disso João sofre rotineiramente de disenteria, já teve hepatite, cólera e até gastroenterite. Aliás, no Brasil morrem cerca de 20 crianças por dia vítimas da falta de esgoto sanitário – foi assim que João Valjão viu morrer diante de seus olhos, no corredor lotado e fétido de um Pronto-Socorro, seu único filho. Bem, como orçamentos e políticas públicas de saneamento nunca foram feitos pelo “Zé-Povinho”, creio que João Valjão e sua classe não tenham culpa por este horror.

Entre uma disenteria e outra, João Valjão tem sempre fraqueza e dificuldade para aprender até coisas simples. É a falta de ferro no organismo, João! Segundo a ONU, um brasileiro médio (o “Zé-Povinho”) não supre sequer um terço das necessidades mínimas recomendadas de vitaminas e sais minerais. Daí a sua falta de saúde e aparente falta de inteligência. É por isso que o Brasil tem a maior relação de farmácias por habitante do mundo. Mas vamos lá: também aqui, como a saúde pública nunca foi gerenciada pelo “Zé-Povinho”, creio que João Valjão e sua classe não tenham culpa.

Nosso personagem, realmente um infeliz, é viúvo: sua esposa morreu em um acidente de trânsito há alguns anos – o ônibus no qual estava foi desviar de um buraco na estrada e bateu de frente com uma carreta cheia de granito. Nunca ocorreu a João Valjão se perguntar por qual motivo um país imenso como o Brasil tem a mesma quantidade de ferrovias que o pequenino Japão, com a agravante de 40% delas estarem quase inutilizáveis. Por causa disso, 70% de tudo o que se transporta aqui vai de caminhão através de estradas que mais parecem matadouros – um absurdo sem paralelo no planeta. Como o “Zé-Povinho” nunca elaborou a política de transportes, tarefa esta reservada aos doutos, creio que não é de ser debitada a João Valjão culpa alguma.

Nos finais de semana, João Valjão gostava de tomar uma cervejinha no boteco da favela. Mas até isto está difícil, por causa da bandidagem. Com freqüência a Polícia sobe o morro, troca tiros com alguns, prende outros, mas logo todos retornam e “tudo volta ao normal”. Entre um tiroteio e outro João Valjão vai levando sua vida, sem desconfiar que no Brasil apenas 2% dos crimes são punidos. Ainda aqui, como o “Zé-Povinho” nunca gerenciou nosso aparato de segurança pública e judicial, podemos afirmar que João Valjão é inocente.

Dia desses ele leu no jornal que o Brasil perde anualmente 5% do PIB, ou R$ 72 bilhões, com a corrupção. Pois é: como o “Zé-Povinho” dificilmente ocupa cargos públicos, estes reservados no mais das vezes para as pessoas instruídas, quero crer que João Valjão não tenha culpa alguma por mais esta mazela.

E assim, de exemplo em exemplo, não será difícil concluirmos que quem está falhando na construção do Brasil não é o povo mais humilde – este, “aos trancos e barrancos”, está lá nas fábricas, nas construções, no comércio e pelas ruas dando sua contribuição. Se mais não faz, com toda a certeza é porque serviços públicos administrados invariavelmente por pessoas cultas e instruídas não lhes proporcionou, durante a tão importante fase da infância, saúde, educação e condições dignas de vida – e esta não é minha opinião isolada, mas sim a conclusão de estudos técnicos da ONU.

Diante deste quadro, talvez sejam oportunas as palavras de Sartre: “quando os ricos estão em guerra, são os pobres que morrem”.

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