Realidades

Constantemente os jornais publicam reportagens acerca do estado prisional no Estado e no País. Mostram, com fotografias das mais chocantes, celas aptas para 12 ou 13 pessoas, com 60 a 80 presos amontoados um por cima do outro, não tendo sequer lugar para se sentarem.

Aqueles que não estão muito ligados com as coisas da Justiça pensam, desde logo, que ali se acham trancafiados homicidas, latrocidas, estupradores, traficantes e assaltantes da pior espécie, que, afinal de contas, não mereceriam tratamento diferente.

Ledo engano! Pois no meio daquela promiscuidade revoltante e deprimente encontram-se, também, muitos indivíduos, cidadãos honestos e corretíssimos, que se sujeitam à chamada “prisão civil”, porque compraram um veículo e não conseguiram pagar algumas prestações, ou, desempregados, não puderam dar a pensão alimentícia à mulher de quem se separaram. E há, também, inúmeros lavradores, camponeses, homens do campo, que lutam de sol a sol, e, por gostarem de uma caçada nos finais de semana, mataram um juriti ou um tatu. Ou uma paca, para comemorarem o nascimento de um filho ou o casamento de uma filha.

Há algum tempo, a imprensa noticiou o caso de um operário que foi morto dentro da prisão, onde se encontrava porque deixou de pagar a pensão alimentícia à sua ex-esposa.

Essas situações dramáticas e constrangedoras decorrem de preceito constante da Constituição de 1988, do seguinte teor: “Não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel” (art. 5º, LXVII).

Essa disposição aparentemente não revogou o Decreto-Lei 911/69, da época da ditadura militar, que equiparou aquele que atrasa o pagamento de um contrato de “alienação fiduciária” ao “depositário infiel”.

Então os Bancos e agentes financeiros passaram a emprestar unica e exclusivamente através de “alienação fiduciária”. Com isso, o Juiz manda intimar o devedor a pagar ou devolver o objeto (do qual muitas vezes já foram pagas quase todas as prestações), sob pena de prisão. Se o indivíduo não pode pagar, devolve o carro ou a coisa que comprou, para não ir para a cadeia. Outras vezes, porque resiste em devolver aquilo que, a bem dizer, é na realidade, seu, porque foi financiado em 20 mil, por exemplo, já pagou 25 e ainda deve outros 30 mil, vai para a cadeia.

Quantos casos existem em que a família, na emergência, se vê obrigada a vender geladeira, televisão e outros bens, ou a negociar uma casa ou terreno pela metade do seu verdadeiro valor, para salvar o parente.

Como vivemos eternamente em crise, sob o regime de juros altíssimos, muitas vezes insuportáveis para a maioria da população, sur*gem, a todo momento, casos pavorosos, que acabam até mesmo em suicídio ou morte por ataque cardíaco, diante da situação humilhante e constrangedora.

Apesar do rigor draconiano da Lei, a Justiça tem procurado atenuar sua aplicação.

Assim, encontramos decisão do Ministro Edson Vidigal, do Superior Tribunal de Justiça: “O devedor-fiduciante que descumpre a obrigação pactuada e não entrega a coisa ao credor-fiduciário não se equipara ao depositário infiel, passível de prisão civil, pois o contrato de depósito, disciplinado nos arts. 1.265 e 1.287, do Código Civil, não se equipara, em absoluto, ao contrato de alienação fiduciária. A regra do art. 1º do DL nº 911/69, que equipara a alienação fiduciária em garantia ao contrato de depósito, perdeu a sua vitalidade jurídica em face da nova ordem constitucional. Recurso ordinário provido. Habeas corpus concedido (DJU – STJ – 15/06/98 – RHC. nº 5.608-RJ – Rel. Min. Vicente Leal).

Temos, mais ainda: “Havendo manifestação tempestiva do devedor de alimentos, acerca da impossibilidade de arcar com o ônus em débito, não pode o juiz decretar, desde logo, a custódia, sem a apreciação da justificativa, a teor do art. 733, § 1º do CPC. Habeas corpus concedido.”

E: “Prisão civil de devedor de alimentos que, intimado, ofereceu justificação ou escusa. Ilegalidade do despacho que a decreta sem qualquer fundamentação. Ante o exposto, suspendo a prisão do paciente (DJU – STJ – 07/08/98 – HC-7.624-CE – Min. Edson Vidigal).

Acontece que, enquanto o processo sai da Comarca de origem, chega ao Tribunal de Justiça ou é encaminhado ao Superior Tribunal de Justiça, o pobre coitado vai ficando de molho na prisão. Isto porque, devido à falta de clareza do texto constitucional, uns juízes entendem que a prisão é legal, outros entendem que é ilegal, e a “vítima” continua apodrecendo na cela até chegar a ordem do Superior Tribunal de Justiça, ou do Supremo, de Brasília.

Numa época em que tanto se clama e proclama sobre a necessidade de reformas constitucionais inadiáveis, imprescritíveis, impostergáveis, imprescindíveis, não seria nada demais tirar-se da nossa Constituição esse instituto anacrônico e medieval, da prisão civil.

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