A decisão do Supremo

Lembro-me perfeitamente, quando Deputado Federal, nos idos de 1968, o Congresso Nacional aprovou a chamada “lei de isonomia”, estabelecendo a equivalência entre os vencimentos dos funcionários civis e militares.

Essa Lei encontrou forte resistência por parte das Forças Armadas, cujos porta-vozes sustentavam enfaticamente que se tratava de duas carreiras completamente distintas: que o militar arrisca a vida, lida com armas, zela pela segurança nacional dia e noite, sujeita-se a plantões e convocações repentinas, e, além disso, sofre violentas pressões psicológicas sob o regime de subordinação hierárquica, que faz parte da vida castrense.

A aprovação dessa Lei foi uma das principais causas do Ato Institucional nº 5, que culminou com a decretação imediata do fechamento Congresso Nacional, e revogação pura e simples da Lei da Isonomia.

A partir de então desencadeou-se campanha, a nível nacional, para reexame da matéria. As maiores lideranças da oposição verberavam contra a desigualdade restabelecida, e acenavam para a grande classe do funcionalismo civil, e para o povo, com a idéia de democracia ampla, geral, irrestrita, em que se evitariam medidas dessa natureza, que conflitavam com o ideal de justiça e os próprios sentimentos nacionais.

Foi aí que, quando da elaboração da Constituição de 1988, o combativo Deputado Ulisses Guimarães, apoiado por Tancredo Neves, pela OAB, CNBB e tantas outras instituições defensoras incansáveis dos ideais democráticos, obteve do Congresso Nacional a aprovação de dispositivo constitucional nos seguintes termos: “a revisão geral da remuneração dos servidores públicos, sem distinção de índices entre servidores públicos civis e militares, far-se-á sempre na mesma data” (CF, art. 37, X).

Eis que, por incrível que pareça, o Governo, entregue às mãos de democratas autênticos, batalhadores intimoratos e intemeratos, da causa da democracia e da isonomia, concede, sem mais nem menos, aumento aos militares, deixando de lado os civis. Não houve sequer um arremedo de justificativa – como, por exemplo, que as mercadorias adquiridas pelos civis seriam mais baratas, ou os civis tivessem menos necessidades, etc.

Ora, os civis, baseados na chamada “Constituição cidadã”, em vez de partirem para greves e agitações, como na época do regime militar, simplesmente recorreram à Justiça.

É por isso, pela simplicidade e singeleza dos fatos, que ficamos estarrecidos com a reação que se desencadeia em torno da decisão do Supremo Tribunal Federal, reconhecendo os direitos do pequeno número de funcionários que bateram às suas portas.

Surpreendente, revoltante e desmoralizante teria sido o Supremo deixar de acolher tal pretensão. O ato do Governo chocava-se violentamente com o dispositivo constitucional. Era flagrante a distonia. O Supremo, que durante o regime militar concedeu tantos e tão memoráveis habeas corpus (inclusive a Mauro Borges, na época governador de Goiás, que enfrentava fortíssima pressão militar), mostrou-se fiel às suas tradições.

Alega-se, sem-cerimoniosamente, que a decisão põe em risco um plano econômico. Ora, não é a Constituição que deve se adaptar a planos econômicos, mas, sim, o contrário: todo e qualquer plano econômico tem que se ajustar rigorosamente à Constituição.

O decidido pelo Supremo não está de acordo, apenas, com a Constituição e a Lei, mas, sobretudo, com a própria História, com a consciência nacional, pois representa uma conquista democrática da sociedade brasileira, insculpida na Constituição após muita luta, prisões, cassações, e até mortes.

Enviar por e-mail Imprimir