Crimes no trânsito

Diante do descaso do Estado, em muitos países têm sido organizadas associações de mulheres violentadas, de famílias que tiveram pais assassinados, e principalmente, de vítimas do trânsito. Aqui no Brasil promovem-se movimentos semelhantes no Rio de Janeiro e em São Paulo.

Tais associações procuram conseguir uma reparação financeira para as vítimas. Observa-se que a preferência por este tipo de reparação tem crescido bastante, especialmente entre os lesados em delitos de trânsito. Estes não mostram o mínimo interesse em que o culpado seja punido pela forma “tradicional”, porque sabem que esta punição, além de ser aleatória e problemática, é levíssima.

Segundo foi divulgado no Forum Internacional sobre Segurança no Trânsito, realizado em dezembro de 1995, em Brasília, 10% das mortes em acidentes de trânsito no mundo inteiro acontecem no Brasil. Morrem por ano, em nosso Páis, em acidentes deste tipo, 50 mil pessoas, enquanto que outras 150 mil sofrem ferimentos graves mutilantes, ou que provocam deficiências permanentes como a cegueira e a paralisia. O múmero de cegos e paralíticos chega a ultrapassar o daqueles que o são por causas orgânicas. Cerca de 60% dos leitos de ortopedia em hospitais são ocupados por vítimas de acidentes de trânsito, que, na maioria das vezes, são atingidas na cabeça e nas pernas.

Em Brasília, os acidentes de trânsito são os maiores causadores de mortes violentas. Basta dizer que, naquela cidade, em um período de apenas três meses, ocorreram 1.226 acidentes com vítimas.

Observa o Professor Nilo Batista que “nosso facínora mais atuante, nosso inimigo público nº 1, e recordista absoluto em matar-nos e mutilar-nos não é o temível assaltante ou o traficante aquadrilhado. Essa gente agressiva e frequentemente cruel não conseguiu ultrapassar a média de modestos 2,65% (no Rio), 5,12% (em São Paulo), 2,08% (em Salvador), e mais ou menos 2% (em Recife), do total das mortes criminais, nessas cidades, no período de cinco anos. O superbandido de que estamos falando, ao contrário, foi responsável, ao longo desses cinco anos por uma média de 30,61% (no Rio), 38,42% (em São Paulo), 64,74% (em Recife) daquele total. No País todo, só no ano de 1986, fez ele exatas 27.306 vítimas fatais, e feriu nada menos que 399.404 pessoas. Isto é, 75 mortos e 1.094 feridos por dia!”.

A Companhia de Engenharia de Tráfego, da Secretaria Municipal dos Transportes, de São Paulo por sua vez informa que, “em decorrência da violência do trânsito, em 1994 morreram na capital paulista 2.970 pessoas em 17.127 acidentes, enquanto que, em 1995, foram 2.885 os mortos em 18.393 acidentes”, e que “noventa por cento desses acidentes são provocados por fatores humanos, que vão desde o alcoolismo, desrespeito à sinalização, negligência na manutenção do veículo e até o estresse”.

O Ministério da Justiça, justificando nova Lei de Trânsito encaminhada ao Congresso Nacional, onde até este final de 1996 se encontra em tramitação, anuncia e necessidade de legislação adequada para o assunto, porque no Brasil haveria “um milhão/ano acidentes de trânsito, resultando em 50 mil mortes e deixando 150 mil deficientes físicos”.

Mais útil e mais eficaz do que a prisão do automobilista imprudente, seria a apreensão do veículo ou de bens do culpado, até o ressarcimento do dano (ao patrimônio e à pessoa).

Nota-se uma impunidade generalizada no que se refere a crimes de trânsito porque as Leis de Trânsito são feitas por donos de carros, por burgueses e doutores que, em vez de dar o exemplo, às vezes chegam ao ponto de permitir que filhos menores e sem carteira de habilitação saiam dirigindo seus carros em alta velocidade ou apostando corridas na rua, ferindo, matando e mutilando.

De fato, na maioria das vezes, quando é cometido um crime, ultrapassado o traumatismo inicial, o ofendido mostra-se suscetível a entendimentos propostos por advogados, pelo autor, ou por amigos comuns. Isso constitui prática rotineira nos desfalques de Bancos e de empresas comerciais e industriais, onde a revelação de “certos segredos” da instituição importará em novos problemas e maiores danos. A prudência sugere, nessas circunstâncias, qualquer forma de composição, pelo menos para salvar as aparências. O mesmo acontece nos delitos de trânsito, em que a discussão em torno de “quem tem culpa” gera acusações recíprocas, custas judiciais e, muitas vezes, perda infrutífera de tempo e de dinheiro.

Isso tudo retrata, às evidências, o imenso descompasso entre o extenso rol das condutas proibidas e previstas na legislação penal, e o que a sociedade efetivamente reconhece e aceita como crime.

Cremos que não há sequer necessidade de fazer referência a inúmeros crimes que caíram em desuso, tais como o aborto, o adultério, a posse sexual mediante fraude, a sedução, a exploração do lenocínio, o favorecimento da prostituição, o rufianismo, etc. Tudo isso já deveria ter sido posto para fora do Código.

A Lei das Contravenções Penais há muito tempo teria que ser revista e revogada em sua maior parte.

A Lei precisa começar a permitir aquilo que já existe “de fato”, ou seja, a livre negociação entre as partes, a reconciliação e o perdão.

O Ministério Público, supostamente “dono da ação”, não goza do direito de desistir e transigir no curso de um processo iniciado, mesmo que o réu esteja gravemente enfermo ou inválido e o castigo não venha a surtir efeito algum.

Não se aceita mais aquela espécie de Direito Penal punitivo, repressivo, estilo clássico. O que se deseja hoje é que ele seja realista, social e humanitário.

O que se observa no Brasil e no mundo, neste final de século XX, é que o Direito Penal volta às suas origens. Torna-se, cada vez mais, direito privado. Restringe-se sua esfera de atuação propriamente dita, alarga-se a área dos crimes sujeitos à queixa ou à representação do ofendido. Pouco a pouco o Direito Penal regressa aos tempos da “composição”, admitindo a indenização, o acordo, a restituição da coisa, o perdão do ofendido, como causas da extinção da punibilidade, bem como a solução por arbitragem.

Vai ele perdendo o seu caráter essencialmente punitivo, na medida em que o Estado passa a dar ênfase à prevenção, a descriminalizar inúmeras condutas, a punir outras muito mais atenuadamente, e, sobretudo, a substituir penas privativas de liberdade por multa ou penas restritivas de direito.

Enviar por e-mail Imprimir