Da caça

O Código de Caça estabelece pena de reclusão de dois a cinco anos para a “caça profissional”, e reclusão de um a três anos, para o que matar animais da “fauna silvestre” (art. 27).

Esses crimes são inafiançáveis (art. 34), razão por que o agente deveria permanecer preso, trancado numa das fétidas celas de nossso aparelho policial, até o julgamento final do processo.

Acontece que o Código de Processo Penal dá ao Juiz o poder discricionário de não conceder direito de fiança “quando presentes os motivos que autorizam a decretação da prisão preventiva” (art. 324). Da mesma forma, se o Juiz entender que no caso concreto não se justificaria a prisão preventiva, pode liberar o acusado, sob fiança, ou independentemente do pagamento de fiança.

Se os juízes não aplicassem o equilíbrio e bom senso na análise das situações que se apresentam, cremos que a esta altura todas as prisões do país estariam abarrotadas tão-só e exclusivamente com caçadores.

Se não, vejamos:

A caça é costume em todos os Municípios do interior desse Brasil imenso e despovoado. Pobres, ricos e remediados, desde a mais remota antiguidade, junto a todos os povos e todas as civilizações, gostam de caçar. A caça está na origem do homem. Tanto assim que historiadores e sociólogos dividem a civilização humana em duas fases: a nômade e a sedentária.

O homem vivia caçando de um lugar para outro, sem se radicar e se estabelecer definitivamente num ponto qualquer. Após muitos séculos de vida nômade, passou à civilização sedentária: fixou-se com sua família em determinados lugares, fazendo plantações e criando animais, para viver.

Como mais da metade do território nacional é constituída de florestas (muitas ainda virgens), milhões de pessoas ou caçam para viver ou praticam a caça como esporte.

No Brasil, à semelhança dos Estados comunistas, a Lei admite, junto à propriedade estatal sobre terrenos e solo, uma propriedade também sobre a selva e os animais que ali vivem.

De acordo com a Lei de Caça, o direito de caça está ligado ao dever de preservação; os regulamentos de tiro têm de garantir a preservação da espécie. Daí resulta que as prescrições contra a caça ilícita vão além do direito de apropriação do autorizado à caça, para protegerem também a riqueza cinegética.

A Lei prevê dois tipos penais mistos: a) caça ilícita cometida por aquele que dá apoio ao agente para a caça: captura, mata ou se apropria, e, b) caça ilícita através apropriação ou dano de coisas que estão submetidas ao direito de caça.

  1. a) São para ser compreendidos como “selvagens” animais sem dono, caçáveis. Sujeitos ao direito de caça são animais (aves, pássaros) que vivem soltos sobre a superfície da selva, peles, chifres dos animais e até mesmo ovos de aves silvestres.

Fica fora de dúvida que há caça ilícita quando o agente se apropria de um animal que se encontra ainda vivo numa armadilha ou num caso apresentado por um crime anterior, pois um tal animal não perdeu, mesmo in concreto, sua característica de “animal caçável”.

Há, além disso, caça ilícita, quando o agente posterior mata um animal do caçador ilícito, que não o levou consigo. É para considerar também um tal animal como “objeto do direito de caça”, pois jurídico-penalmente pode ser tratado como “caça ocasional” um animal morto pelo agente anterior, mas que não o levou consigo. Finalmente, é para admitir que o agente comete receptação quando, em entendimento com o caçador ilícito leva consigo o objeto do direito de caça obtido, que se encontra na guarda do mesmo.

Mas a questão controvertida se apresenta ali onde o agente anterior (caçador ilícito) furtou de um terceiro um tal objeto, isto é, fêz a subtração após o caçador ilícito ter fundado a guarda ilícita de seu crime. A possibilidade de cometer furto escapa, por conseguinte, porque o agente anterior nem fundou a propriedade própria nem alheia, pois o animal, tanto antes como depois, é sem dono. É aplicável o primeiro tipo penal misto, pois falta um objeto (animal vivo), e o problema agrava-se portanto na questão, se se trata de um objeto sujeito à Lei de Caça.

  1. b) Agente pode ser qualquer um, fora o autorizado ao exercício da caça, portanto, em determinadas circunstâncias, mesmo o autorisado à caça, que ultrapassa os limites traçados pela autorização.
  1. c) A ação do primeiro tipo penal de escolha consiste nisso – que o agente persegue a caça, captura-a, mata-a ou se apropria dela. O “perseguir” é simples delito de atividade, exige, sem dúvida, uma vontade dirigida às demais características, mas não pressupõe um resultado. A ação pode, portanto, ser confirmada, sem apresentar resultado algum. Só há uma tentativa impune, portanto, na admissão errada das características do tipo penal. Ato preparatório impune é, por outro lado, a procura de locais para instalação de armadilhas.

Como se vê, estão sujeitos a penas que variam de um até seis anos de reclusão (sem direito à fiança, ou sejam sem direito de permanecerem soltos até julgamento final do processo), aqueles que: matam a caça, ferem-na, consomem-na, apanham-na depois de morta por alguém, destróem ou inutilizam seus chifres, peles, ovos, etc.; aqueles que armam armadilhas para pegar a caça (mesmo que a armadilha não pegue nada); que andam armados na floresta (presunção que se encontram em caça), etc.

Acontece que, por outro lado, o Código Penal prevê a pena de reclusão de três a seis anos, para o crime de incêndio (art. 250): crime afiançável. Assim, aquele que colocar fogo numa floresta e matar dezenas, centenas ou milhares de animais, responderá por crime afiançável e será muito menos punido do que, sem incêndio, matar apenas um tatú ou um sarué.

Já temos tido oportunidade de acentuar reiteradas vezes que quem faz política criminal, em primeiro lugar, é o legislador. Ao selecionar os fatos que constituem crimes, ao estabelecer as penas, e, finalmente, ao fixá-las entre um máximo e um mínimo, o legislador põe em prática toda uma filosofia penal.

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