Das contradições legais

Nossa Constituição Federal, atualmente em vigor, consagrou em seu art. 5º, LVII, o chamado princípio da presunção de inocência, dizendo textualmente que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

Já o art. 594 do Código de Processo Penal (oriundo da chamada “Lei Fleury”), por sua vez, preceitua que “o réu não poderá apelar sem recolher-se à prisão, ou prestar fiança, salvo se for primário e de bons antecedentes, assim reconhecido na sentença penal condenatória, ou condenado por crime de que se livre solto”.

E é exatamente com base nesses dois dispositivos que observamos as situações mais contraditórias e confusas no campo da Justiça criminal. Há pessoas que já foram processadas e condenadas, que, por força de recursos e mais recursos interpostos um após o outro, continuam soltas. Isto porque a sentença só transita em julgado após esgotados todos os recursos possíveis e imagináves. Outras, que ainda estão sendo processadas, e muitas vezes não foram sequer denunciadas, acham-se há meses e meses, e até mesmo há anos, na cadeia, aguardando sentença ou o fim do processo.

Ora, se o réu é presumido inocente, obviamente não pode ficar preso. E, na forma da Lei, ele é presumido inocente até que exista uma sentença transitada em julgado.

Assim, por exemplo, se um cidadão mata, estupra, rouba ou trafica drogas, e é preso em flagrante, basta que o advogado prove que se trata de um primário, de bons antecedentes, residente e domiciliado no distrito da culpa, para gozar do pleno direito de aguardar em liberdade a sentença final.

Essa situação esdrúxula, que não existe nos países mais cultos e civilizados do mundo, onde toda pessoa presa em flagrante só é solta após ser absolvida no respectivo processo, sempre vem gerando revolta imensa na sociedade, ocasionando protestos, e, muitas vezes, a represália dos familiares das vítimas.

Há casos e mais casos de réus que são condenados no júri a 20, 30 anos, e, após longo e demorado julgamento, saem livres e tranquilos, em liberdade, aguardando soltos a tramitação dos seus infindáveis recursos.

Assim, os Tribunais Superiores passaram a “flexibilizar” o texto da Lei, através de interpretações que justificassem a manutenção na prisão de réus que deveriam gozar do direito de se manterem livres, soltos e felizes, gargalhando da Justiça perante toda a comunidade e suas vítimas.

Dentro dessa linha de raciocínio, veio a Súmula 9, do Superior Tribunal de Justiça: “A exigência da prisão provisória, para apelar, não ofende a garantia constitucional da presunção de inocência.”

Acontece que Súmula não é Lei. E o Juiz só está obrigado a zelar pelo cumprimento da Lei, e não de súmulas. Daí vemos inúmeros Juízes que entendem que deve ser respeitada a Lei, na sua pureza majestática, e outros que se enfileiram ao lado dos adeptos da “flexibilização”.

Surge, nesse particular, a Escola do Direito Livre, para a qual a lei é simplesmente uma referência orientadora para o juiz, “da qual este pode afastar-se quando ela fere seu sentimento do Direito num caso concreto”.

A propósito, proclamava Aristóteles: “Ir ao juiz é ir à Justiça; pois a natureza do Juiz é ser uma espécie de justiça vivente” (Ethica nicomachea, 1132 a, 20). O que é ressaltado por Cossio: “Se o Juiz estivesse obrigado a aplicar as leis como ente desumanizado, sem valorar a justiça que possa resultar de sua aplicação ao caso e sem atender à razão pela qual foram editadas, careceria de objeto e de sentido o preceito que lhe impõe a obrigação de interpretá-las segundo sua ciência e consciência”.

Finalmente, diante do trágico quadro com que nos defrontamos, não custa relembrar o jurista francês Donnedieu de Vabres, ao ressaltar que, “a Lei escrita é imperfeita, e não é mais que guia prático para o Juiz. A última decisão sobre o justo e o injusto não se pode tomar de regra escrita alguma. Daí se deduz não só o valorismo na interpretação das leis, senão a qualidade vivente do direito, que não está na lei seca, mas que surge tambem do são sentimento do povo”.

Numa época em que tanto se fala acerca da necessidade de medidas severas e rigorosas para combater a criminalidade, não custa nada que nossos legisladores procurassem reparar essa situação dramática e anômala, o que, sem dúvida, ocasionaria uma redução de pelo menos uns trinta por cento em nossa criminalidade. Porque: 1. diminuiria o sentimento de revolta na sociedade e nas famílias das vítimas; 2. acabaria com a certeza na impunidade.

Aliás, já diziam os romanos que “a certeza da impunidade constitui o maior estímulo ao crime”.

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