Das reformas

Relatam os historiadores que na segunda metade do século 19 a Inglaterra achava-se em plena turbulência: revoltas, agitação social, greves, levantes e alto índice de criminalidade.

Diante de um quadro tão terrível de violências e inquietações, o Primeiro Ministro Disraeli comparece perante a Rainha Vitória e diz: “Majestade, o País está na iminência de uma revolução, que poderá acarretar até mesmo a queda da Coroa”. E a Rainha Vitória pergunta-lhe: “O que V. Exa. sugere?” Aí o Ministro responde: “A única solução que posso sugerir é implantar reformas. Reformar, reformar sempre para que as coisas continuem sempre as mesmas”.

A Rainha, muito sabiamente, seguiu a opinião do seu grande Ministro, e com isso salvou a Monarquia na Inglaterra, que perdura até hoje, enquanto a República foi implantada na quase totalidade do mundo.

Essa passagem histórica nos vem a memória quando analisamos a situação por que atravessa nosso País, em que tanto se fala de reformas, da imprescindibilidade de reformas e da necessidade de reformas urgentes, inadiáveis e impostergáveis. Se não, vejamos.

  1. Desde os idos da Constituição de 1824 (art. 101, II) existe no Brasil a aposentadoria compulsória aos 70 anos. Nunca se viu, nem se ouviu falar, em qualquer campanha política, em discursos de candidatos ou em artigos de jornal, qualquer pedido, reclamação ou reivindicação para aumento desse limite. Eis que de repente a Câmara dos Deputados aprova substitutivo do Relator indicado pelo Governo, fixando o aumento da compulsória nos 75 anos. Passado algum tempo, nessa mesma temporada de reformas constitucionais, anula, em outra votação, a decisão anterior, e o limite para a compulsória permaneceu aos 70 anos.
  1. A Constituição de 1967 fixava em seu art. 161, que “a União poderá promover a desapropriação da propriedade territorial rural, mediante pagamento de justa indenização, fixada segundo os critérios que a lei estabelecer, em títulos especiais da dívida pública, com cláusula de exata correção monetária resgatáveis no prazo de vinte anos, em parcelas anuais sucessivas, assegurada a sua aceitação, a qualquer tempo, como meio de pagamento de até 50% do imposto territorial rural e como pagamento do preço de terras públicas”.

A Constituição de 88, removendo aquilo que resolveu chamar de “entulho autoritário”, passou a dispor: “É garantido o direito de propriedade; a propriedade atenderá à sua função social; a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição” (art. 5º, XXII, XXIII e XXIV).

A simples leitura do texto mostra o caráter ostensivamente mais conservador, e até “anti-reforma agrária” da atual Constituição-cidadã.

Agora, por incrível que possa parecer, nos acalorados debates em torno da reforma agrária, sob tremenda pressão das revoltas nos campos, pretende-se implantar nova reforma, para se retornar aos termos da Constituição de 67.

  1. A Constituição de 88 criou a figura dos crimes imprescritíveis, inafiançáveis, insuscetíveis de graça ou anistia, e até mesmo de cumprimento exclusivamente no regime fechado (art. 5º, XLII, XLIII e XLIV, c/c Lei dos chamados crimes hediondos).

Ora, nunca foi tradição do Direito Penal brasileiro, desde os tempos do Império, a figura de crimes imprescritíveis. Nossa filosofia penal sempre teve em mira a “readaptação social do delinquente”, ou seja, sua ressocialização. Compreende-se que se um indivíduo cometeu um crime e depois deixou passar muitos anos sem reincidir, perdeu a periculosidade social e o Estado considerava-o “ressocializado”, dando por prescrito o crime. Por isso no nosso Direito regulava-se apenas a extinção dessa “periculosidade social” com um prazo maior ou menor de prescrição, dependendo da gravidade do crime. E, no nosso Código, a reincidência interrompe a prescrição (art. 117, VI).

Além disso, o Direito Penal moderno marcha para a descriminalização de condutas e para a redução de prazos prescricionais, ou seja, num sentido exatamente contrário ao adotado pela nossa Carta. Pretende-se, em todo mundo, a aplicação de “substitutivos” de natureza extrapenal, tais como indenização, restrição de direitos, restabelecimento do estado anterior, multa, etc.

Quando se sabe que só no Rio de Janeiro e São Paulo há cerca de 250 mil mandados de prisão contra condenados, com sentença transitada em julgado, que não podem ser cumpridos porque as cadeias acham-se abarrotadas, diante de um problema penal dessa gravidade – aparentemente insolúvel ou pelo menos cuja solução ainda não está esquematizada – pensa-se em prender pessoas por crimes ocorridos há muitos anos – porque os nossos prazos prescricionais já são, por si, longos.

Agora, no dorso de grandes debates nacionais, e da incontrolável crise nas prisões, reabre-se o debate para retorno ao regime da Constituição de 1946.

  1. Com base no Ato Institucional nº 5, a emenda de 1969 à Constituição de 1967 criou o Conselho Nacional da Magistratura, exatamente para controlar o Judiciário de todo o País, sob a supervisão do Procurador Geral da República. Veio a Constituição de 1988 e, a fim de eliminar o “entulho autoritário”, acabou sumariamente com esse Conselho. Agora, levantam-se as vozes por todo o País pedindo, reclamando, protestando e exigindo a criação de um órgão de controle externo do Judiciário, ou seja, de um órgão meramente administrativo. Tudo parece um retorno, mal alinhavado (pra pior), ao regime da Carta de 67.

Finalmente, como dizem os ingleses, “the last, but not the least”, já a Constituição de 1824 dispunha em seu artigo 53 que, “o Poder Executivo exerce por qualquer dos Ministros de Estado a proposição, que lhe compete na formação das Leis; e só depois de examinada por uma Comissão da Câmara dos Deputados, onde deve ter princípio, poderá ser convertida em Projeto de Lei”.

Os Imperadores D. Pedro I e D. Pedro II não gozavam, portanto, desse poder excepcional e extraordinário de editarem leis, a seu puro arbítrio, sem qualquer manifestação do Poder Legislativo.

Getúlio Vargas, em 1937, criou os “decretos-leis”, ou seja, Leis por decreto do Presidente da República. A Constituição de 46, restabelecendo a democracia, acabou com os Decretos-leis. Veio o AI-5 que ressucitou os decretos-leis, mas só permitiu a edição de leis por decreto, durante o recesso do Congresso (art. 2º, § 1º). A Constituição de 1988 acabou com os decretos-leis, chamados de “entulho autoritário” e criou as “medidas provisórias”, com a diferença que, entretanto, podem – e têm sido – emitidas durante o pleno funcionamento do Congresso.

Agora, nesta última safra de reformas, discute-se sobre a conveniência de se retornar ao regime da Constituição de 1824.

Em resumo: no nosso País não têm faltado reformas.

O que não se tem reformado, nem alterado, entretanto, é o quadro dantesco descrito nas palavras imortais de Manoel Bandeira, que, muito embora escritas há mais de meio século, mostram-se de uma atualidade surpreendente:

“Vi ontem um bicho

Na imundície do pátio

Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,

Não examinava nem cheirava:

Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,

Não era um gato,

Não era um rato,

O bicho, meu Deus, era um homem!”

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