Da avocatória

Já naquela época dizia Rui Barbosa em sua famosa “Oração aos Moços”: “Não vos mistureis com os togados, que contraíram a doença de achar sempre razão ao Estado, ao Governo, à Fazenda; por onde os condecora o povo com o título de “fazendeiros”. Essa presunção de terem, de ordinário, razão contra o resto do mundo, nenhuma lei reconhece à Fazenda, ao Governo, ou ao Estado.”

E foi exatamente seguindo tais ensinamentos, que os Juízes aprenderam a analisar os processos em que é parte o Estado (compreendidos nesse conceito a União, Estados e Municípios), dando razão a quem tem, em vez de simplesmente confirmarem as decisões do Executivo, como se fazia antigamente.

Mas, acontece que o Executivo não gosta de aceitar as decisões judiciais que contrariam seus interesses, e resiste. Primeiramente contesta a ação proposta pelo prejudicado: mobiliza sua Procuradoria, composta de tantos e tão ilustres advogados; requer provas; impugna testemunhas e perícias; enfim, por todos os meios admitidos em direito, ataca a pretensão do requerente (às vezes um funcionário, perseguido por ser do Partido contrário, outras vezes um particular acidentado ou atropelado por carro pertencente ao Governo, outras vezes alguém que não recebeu o que lhe era devido, etc.).

Esgotados todos os expedientes protelatórios permitidos pela Lei, se o Juiz, baseado na contundente e esmagadora prova dos autos, decide contra o Estado, este não se conforma e parte para as instâncias superiores: Tribunal de Justiça, Tribunal Regional do Trabalho ou Tribunal Regional Federal; daí para o Tribunal Superior do Trabalho, Superior Tribunal de Justiça; e, finalmente, para o Supremo Tribunal Federal.

Essa longa tramitação às vezes consome 5, 10 ou mais anos.

Daí, parte-se para a fase de Execução, em que, antes de mais nada, deve ser calculada a importância exata a ser paga pelo Estado. São feitos cálculos. Esses cálculos sujeitam-se a não serem aceitos, razão por que dependem, ainda, de decisão judicial.

Finalmente, esgotados todos os recursos possíveis e imagináveis, ou seja, uma vez transitada em julgado a sentença, com o respectivo “quantum” devido, isso, infelizmente, não significa que a parte vencedora entre de imediato no uso e gozo de seus direitos, ou receba a quantia que reivindicava. Absolutamente. A partir daí é extraído um Precatório, ou seja, é expedida uma ordem de pagamento para o Executivo.

Acontece que, muito embora nada mais haja a ser discutido, o Estado simplesmente não paga o precatório. Alega falta de dinheiro, dificuldades orçamentárias, e tantos outros obstáculos, e desatende a ordem judicial, ou ignora-a.

Mas, há outro aspeto a ser analisado. Digamos que dez mil funcionários tenham sido feridos em seus direitos e apenas um recorreu à justiça. Tendo em vista a vitória do companheiro, os demais 9.999 resolvem ingressar, também, com suas respectivas ações, isoladamente, ou em grupo.

O Estado, entretanto, não obstante o direito já estar reconhecido e declarado pela Suprema Corte de Justiça do País (Supremo Tribunal Federal), exige que cada um dos pretendentes promova novas ações, que sofrerão a mesma longa e cansativa tramitação.

A Constituição de 1967 resolveu criar um atalho, através da figura da Avocatória. Isso significa que a primeira decisão passava a valer para todos os demais casos semelhantes: o Supremo poderia “avocar” todos os processos idênticos, ou seja, requisitava, para exame e julgamento duma só vêz, todas as ações em que se discutia o mesmo Direito.

Veio a Constituição de 1988 e acabou com a avocatória, considerando-a “entulho autoritário”, inibidora do poder de criação do Juiz das instâncias inferiores.

Eis que agora, no meio de tantas e tão formidáveis reformas anunciadas e assoalhadas por todo o País, consideradas inadiáveis, impostergáveis, imprescindíveis, sob pena de se impedir e impossibilitar o progresso do País rumo ao terceiro milênio, cogita-se de se retornar aos preceitos da Carta de 67, reintroduzindo-se no nosso regime constitucional a figura da avocatória.

Será que essa esquisita novidade – retorno ao passado, ou, na hipótese presente, progresso para trás – significará alguma evolução ou melhoria? Não nos parece.

Fala-se, a respeito, da necessidade de se exigir dos Juízes o respeito à decisão do Supremo.

Ocorre, entretanto, que quem está desrespeitando a decisão do Supremo, dos Juízes e de todos os Tribunais do País, não é o Juiz: é o Poder Executivo, que se recusa a cumprir as decisões judiciais, e insiste em não pagar o que deve, em detrimento de tantos interesses de tantas pessoas, e em flagrante desrespeito, não apenas ao Poder Judiciário, mas ao Estado de Direito.

Nos países mais cultos do mundo, onde existe o primado do Direito e uma ordem jurídica paira sobre todos – inclusive o Estado – a decisão de um Juiz contra o Estado não se sujeita a recurso por parte do próprio Estado. Parte-se, aí, do entendimento que o Juiz, ao julgar uma ação, julga em nome do Estado: é o Juiz-Estado. O julgamento é feito, não pelo Juiz, mas pelo Estado, através do Juiz. Assim, por exemplo, se um réu é condenado, pelo Juiz ou pelo Júri, com pena considerada pequena ou insuficiente, o Promotor não pode recorrer, porque o Promotor é um órgão do Estado e o Estado, na pessoa do Juiz, já decidiu.

No nosso País, se o Executivo resolvesse aceitar as decisões judiciais, nem que fosse tão-só as julgadas em última instância, centenas e milhares de processos seriam evitados.

A solução para o tormentoso problema não pode consistir, portanto, em nova reforma constitucional, ou, em outras palavras, numa reforma para trás.

Como, está mais do que provado, o Executivo se recusa insistentemente a pagar, e a intervenção federal (prevista constitucionalmente), é medida essencialmente política e difícil de ser decretada), impõe-se a fixação de um percentual orçamentário destinado ao Poder Judiciário, para recolhimento imediatamente após o pagamento dos impostos. Assim, por exemplo, se a Constituição fixasse 4 ou 5 por cento do orçamento para o Judiciário, esse percentual seria transferido automaticamente no mesmo ato de recolhimento dos tributos. Com isso o Judiciário teria meios de se organizar, contando com recursos certos e poderia elaborar um programa para atender os precatórios.

Fora isso, tudo continuará na mesma, com reforma ou sem reforma.

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