O caso Pataxó

A Nação tomou conhecimento, há poucas semanas, de um crime cometido por jovens de família da classe média alta, em Brasília, contra Galdino, um pobre índio pataxó: jogaram-lhe gasolina em cima e atearam fogo, causando-lhe a morte.

Esse terrível crime está previsto no artigo 121 do Código Penal, com duas qualificadoras: 1. por ter sido cometido por motivo fútil; e, 2. pelo emprego do fogo (art. 121, § 2º, II e III).

Os autores, identificados com rapidez pela Polícia, acham-se presos. Confessaram, sem vacilações, deram detalhes de tudo, e chegaram ao ponto de alegar que ignoravam o fato de se tratar de um índio (entendendo que, caso o assassinado fosse um mendigo qualquer, a ação seria permitida, ou até mesmo louvável).

O inquérito, aberto e instruído numa Delegacia de Polícia, foi remetido à Justiça comum, onde o Juiz decretou a prisão preventiva dos acusados e determinou a instauração da respectiva ação penal.

Tudo bem, tudo de acordo com a Lei. O processo vinha correndo celeramente, dado o clamor público, e marchava para solução a curto prazo.

Acontece que a Constituição Federal (artigos 109 e 231) investe a União em protetora e garantidora dos direitos indígenas, e, por uma interpretação oblíqua, os crimes cometidos contra índios teriam que ser julgados pela Justiça Federal.

Como quem tem dinheiro tem bons advogados, os Advogados dos acusados compreenderam logo a circunstância jurídica, e ingressaram com aquilo que se chama, em Direito, “exceção de incompetência”, alegando que a competência para julgar o crime é do Juiz Federal, e não do Juiz comum, porque o índio é um tutelado da União e qualquer lesão a seus direitos tem que ser julgada tão-só e exclusivamente pela Justiça Federal.

Essa alegação de incompetência, como é natural, paralisa o processo, pois todo e qualquer ato praticado por juiz incompetente, é nulo de pleno direito – não produz efeitos e tem de ser repetido. Por esse motivo, o Juiz perante o qual corre o processo fica aguardando a decisão do Superior Tribunal de Justiça, órgão ao qual cabe, de acordo com a Constituição Federal, dirimir o conflito (art. 105, I, d).

O julgamento dentro do Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, é passível, também, de recursos (embargos de declaração, agravo regimental, embargos ao agravo regimental, etc.) e são vários os réus, com advogados diferentes, e, dessa forma, esse incidente em torno da competência pode demorar meses e anos a fio.

Ora, enquanto se deslinda essa questão paralela (relativa à justiça competente), os prazos legais de encerramento do processo criminal são ultrapassados, e a prisão dos criminosos torna-se ilegal, passível de ser revogada pelo Juiz, ou corrigida através de habeas corpus.

Se ficar caracterizada a ilegalidade da situação, e os réus forem soltos, aí a situação muda de figura. Os advogados podem ir requerendo mil e uma medidas protelatórias para adiamento do julgamento – que sejam ouvidas testemunhas residentes em locais distantes, perícias, etc. Se os réus, após longa tramitação do processo, vierem a ser condenados, podem recorrer em liberdade, porque estavam soltos na ocasião da sentença.

Aliás, dentro do processo criminal ainda há margem para recursos de despachos proferidos antes da sentença final, principalmente recurso da sentença de pronúncia.

Finalmente, em se tratando de acusados menores de 21 anos, o prazo prescricional fica reduzido para a metade (CP, art. 115), aumentando, por conseguinte, em 50% a possibilidade de, ao final de tanta celeuma, os autores saírem ilesos, pela porta larga da prescrição.

Este é um caso, igualzinho a tantos outros milhares ou milhões que fazem parte da rotina do Judiciário. E os juízes, nervosos, impacientes e revoltados, vêm que não podem aplicar a Justiça ao fato concreto, devido aos inúmeros obstáculos criados pela Lei, sempre para favorecer a impunidade.

Os leigos não conseguem compreender que, muito embora se fale de Poder Judiciário, num sentido genérico, na realidade o que existe são inúmeros órgãos funcionando como compartimentos estanques, incomunicáveis: Justiça Federal, Justiça Estadual, Justiça do Trabalho, Justiça Militar, Justiça Eleitoral, não se comunicam entre si. Todas essas Justiças são independentes, autônomas. Entre elas acham-se fincadas barreiras intransponíveis.

A mesma incompetência do caso do índio pataxó existe nas ações de funcionários – a competência é da Justiça estadual, ou da Justiça trabalhista, ou da Justiça Federal, e assim por diante. E em inumeráveis outras questões.

Quer-nos parecer que esse tema, angustiante, sério, dramático, já abordado por tantos comentaristas de assuntos jurídicos, há tanto tempo, não poderia deixar de surgir, preferencialmente, em qualquer debate sério sobre reforma do Judiciário.

Neste canto de página já assinalamos, portanto, até agora, dois pontos que reputamos essenciais para uma verdadeira reforma do Judiciário: 1. fixação de um percentual orçamentário fixo, a ser creditado na conta do Poder Judiciário no ato de pagamento dos tributos (única solução para o problema dos precatórios e defesa dos direitos dos cidadãos); 2. criação de um canal de comunicação e integração entre todos os órgãos que compõem o Poder Judiciário, eliminando-se, ou pelo menos reduzindo-se, os conflitos de competência.

Infelizmente quando tanto se fala da necessidade de reformas inadiáveis, impostergáveis, indispensáveis, ficam de lado pontos fundamentais, que inclusive foram objeto de emendas (todas arquivadas) de tantos juristas competentíssimos, na oportunidade da elaboração da Constituição de 1988.

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