Direito de correr

Os primeiros Códigos Penais apareceram no mundo no século 18: o da Baviera, de 1751, o austríaco, de 1768, e o prussiano, de 1791. Antes disso o que existia sobre crimes e penas, pode-se dizer, era o que constava do Direito Canônico, da Igreja Católica, pois considerava-se pecado e crime a mesma coisa. E se a Lei canônica estabelecia os pecados e as penas, naturalmente regulava, também, os crimes e as penas.

Os dois grandes doutores da Igreja que se preocuparam profundamente com o assunto e passaram a interpretar as leis canônicas, foram Santo Agostinho e São Tomás de Aquino.

Naquela época, falando sobre o homicídio em legítima defesa, São Tomás de Aquino, em seu famoso livro “Suma Teológica”, cita os ensinamentos do Papa Nicolau, que diz: “Quanto aos clérigos, que mataram um pagão, para se defenderem, e sobre os quais me consultaste se, depois que se emendaram pela penitência, podem readquirir a sua situação anterior ou subir a outra mais alta, sabei que nós não admitimos nenhuma ocasião, nem lhes damos nenhuma licença, para de qualquer modo, matarem a quem quer que seja.

Ora, tanto os clérigos como os leigos estão obrigados, em geral, a observar os preceitos morais. Logo, nem aos leigos é lícito matar a outrem, para se defenderem. O homicídio é pecado mais grave que a simples fornicação ou o adultério. Ora, a ninguém é lícito praticar a simples fornicação ou o adultério, ou qualquer outro pecado mortal, para conservar a vida própria; porque a vida espiritual é preferível à corporal. Logo, a ninguém é lícito, para se defender a si mesmo, matar a outrem para conservar a vida própria” (Suma, vol. V, cap. LXIV).

E acrescenta: “Parece que não é lícito matar a outrem para nos defendermos”. Pois, diz Agostinho: “Não me agrada a opinião dos que nos permitem matar a outrem para não sermos mortos por ele; salvo se se trata de um soldado, ou de quem está investido de uma função pública, que mata para defender, não a si, mas aos outros, em virtude de um poder legitimamente recebido, que lhe compete à sua pessoa. Ora, quem, para se defender, mata a outrem, mata para não ser morto. Logo, parece que isso é ilícito. Para conservarmos a vida do corpo a ninguém é lícito matar a outrem”.

A doutrina teológica, portanto, aconselhava os agredidos a correrem, ou, de qualquer modo, fugirem do agressor. Ou se deixarem matar.

Com relação ao roubo, Santo Agostinho dizia que “aquele que, não tendo nada, rouba do que tem muito, não comete crime algum, pois apenas tomou um pouco do muito que lhe pertence” (Idem, cap. LXVI).

Na Idade Média, portanto, o indivíduo não devia nem podia reagir diante da agressão à sua vida ou ao seu patrimônio: em caso de agressão à vida, correr ou se deixar matar; na agressão ao patrimônio, entregar tudo, sem tugir nem mugir.

Só há um ou dois séculos consolidou-se a concepção que o criminoso, quando infringia a Lei, estava ofendendo não apenas sua vítima, mas toda a sociedade, e, por conseguinte, caberia ao Estado punir o crime, em nome dessa sociedade ultrajada.

Foi daí que surgiram as Ciências Penais e os Códigos Penais, estudando o crime, o criminoso e a pena, definindo as condutas proibidas e respectivas penas.

Acontece que não obstante o elevado número de Leis Penais e de Códigos Penais, a criminalidade só tende a aumentar, atingindo níveis quase que insuportáveis.

Basta dizer que nos Estados Unidos, a maior e mais rica nação do mundo, de tanto ver se exaurindo seus recursos, setores importantes da sociedade discutem energicamente o problema penal – no Parlamento, na imprensa e nos tribunais -, entendendo que de nada está adiantando a construção de tantas prisões (de segurança máxima, média e mínima), nem tampouco a pena de morte, aplicada inclementemente às centenas e milhares de condenados (há mais de duas mil pessoas no “corredor da morte”, ou seja, aguardando a execução de suas sentenças), uma vez que a delinqüência cresce assustadoramente: de menores e maiores.

De uns tempos para cá surgiu na grande nação do norte um fenômeno apavorante: o dos crimes em série e em massa. São mortas cerca de 4 mil pessoas por ano, nos crimes em série. Por outro lado, o mais célebre assassínio em massa foi o de James Oliver Huberty, veterano do Vietnam, guarda de segurança desempregado, que, armado de um rifle semi-automático de 9mm., uma carabina de calibre 12 e uma pistola calibre 45, invadiu uma lanchonete Mac Donald’s em San Isidro, atirando “em tudo que se mexia”: matou 221 pessoas, entre adultos e crianças.

Tudo isso nos vem a memória quando vemos, no nosso País, amplamente noticiado, as autoridades de segurança recomendando às vítimas que “não reajam”, entregando-se pacificamente aos agressores. Com isso o Direito Penal começa a ser substituído pelo direito de correr, ou de fugir. É a lei do “salve-se quem puder”.

Estamos, sem dúvida alguma, retornando aos tempos de São Tomas de Aquino e de Santo Agostinho.

Bem a propósito vêm as palavras do Eclesiastes: “As coisas que foram, são as que serão; o que já se fez, se voltará a fazer e não há nada de novo sob o sol; o que existe já o era desde há tempos e tempos anteriores a nós” (1-9-10).

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