Do trânsito

Houve uma época na História da Humanidade, em que se estabeleceu, especialmente na Cristandade, acalorado debate em torno do Diabo. Discutiu-se principalmente a origem do Diabo: se seria um ente autônomo, criado por si mesmo em oposição a Deus (um para o mal e o outro para o bem), ou se teria sido criado por Deus.

Matéria difícil e de alta indagação. Muito embora tenham sido efetuadas profundas pesquisas filosóficas, metafísicas, cabalísticas e exotéricas, após intermináveis debates, concílios e congressos internacionais, não se chegava a conclusão alguma. Os mais radicais se indignavam com a hipótese de que Deus pudesse ter dado origem a Satanás, o terrível Diabo, que só existiria para atormentar os homens.

Após séculos de acesa controvérsia doutrinária, finalmente os teólogos conseguiram sossegar sua intranquilidade espiritual partindo do seguinte raciocínio: ora, se o Diabo fosse um ser surgido independentemente de Deus, então haveria dois deuses: o Deus do bem e da misericórdia, e o Diabo, que seria, então, o Deus do mal e da vingança. Como só pode haver um Deus, Senhor e Criador de todas as coisas, não resta a menor dúvida que o Diabo foi criado por Deus.

Essa conclusão passou a ser adotada universalmente.

Isto, aplicado ao campo do Direito, significaria mais ou menos o seguinte: não existem duas formas de Direito, ou seja, o ato jurídico lícito (de acordo com o direito) e o ato jurídico ilícito (o crime, contrário ao direito). Não há o Direito e o anti-Direito. O Direito é um só, e dele derivam os atos jurídicos em geral: lícitos e ilícitos.

Compete exclusivamente ao legislador, que é quem faz o Direito, dizer o que considera ato jurídico lícito e ilícito.

Assim, ao longo do tempo, muito do que era considerado ilícito pelo Direito, passou a ser considerdo lícito, e vice-versa.

Temos, por exemplo:

  1. Durante muitos séculos a escravidão de um homem por outro homem era ato jurídico lícito, perfeitamente normal, sancionado pelo Direito. Os escravos, aqui mesmo no Brasil, até final do século passado, eram negociados como gado e outros objetos, móveis ou imóveis. Hoje, entretanto, esses atos são ilícitos: há os crimes de sequestro, cárcere privado, escravidão e até mesmo de “condição análoga à de escravidão”.
  1. As mulheres, no tempo dos romanos, eram tratadas como animais domésticos, não gozando de direito de espécie alguma perante seus “donos” ou “patrões”. Com o passar do tempo passaram a gozar dos mesmos direitos que os homens, garantidos até constitucionalmente.
  1. Os animais e as coisas podiam cometer crimes e se sujeitavam à responsabilidade penal. Por isso, se o criminoso, ao cometer o crime, estava montado a cavalo, o cavalo tinha que ser condenado à morte junto com o cavaleiro. A casa onde foram cometidos crimes, tinha que ser destruída. Na Bíblia temos os exemplos de Sodoma e Gomorra, cidades onde campeavam o pecado e a devassidão: junto com seus habitantes foram destruídas todas as casas, mortos todos os animais domésticos e todo e qualquer ser vivo que ali se encontrasse no momento em que desceu a espada vingadora do Senhor. Atualmente é o contrário: crime são os danos e a destruição de animais e coisas.

Temos assim, no decurso do tempo, inúmeros exemplos de ilícitos civis que se tornaram ilícitos criminais, e vice-versa.

Nos países mais adiantados do mundo, especialmente naqueles em que vige o chamado “socialismo democrático”, já não se discute sequer se o dano causado por acidente de carro seria ilícito civil ou penal – se seria caso de cadeia ou de reparação de danos.

Trata-se de compreender que os acidentes de trânsito são uma consequência inafastável da vida moderna. Assim como numa fábrica, com centenas e milhares de empregados nunca deixará de haver acidentes do trabalho, da mesma forma em ruas estreitas, apinhadas de veículos, no trânsito confuso e complexo de nossas cidades e rodovias, nunca deixará de haver desastres.

Por isso o que se discute, hoje, no campo do Direito, é se não seria preferível instituir-se um meio de compensar todas as espécies de danos causados por acidentes de trânsito.

Em vez de tanta perda de tempo e de dinheiro com processos, Advogados, Juízes, Promotores, serventuários da Justiça, funcionários em geral, sugere-se a instituição de um seguro popular global, organizado à maneira de um direito público.

O que nos surpreende – e lamentamos profundamente – é que o novo Código Nacional de Trânsito, que entrará em vigor brevemente, não tenha sequer cogitado desse terrível aspecto do problema. Em vez de caminhar para a frente, quer-nos parecer que o que se fêz foi apenas transformar o Código Nacional do Trânsito em Código Penal do Trânsito, tantas são as novas penas e multas instituídas, atingindo até pedestres.

Cremos que só com a aplicação do dinheiro das multas, arrecadado dos infratores, já se daria um importante passo no sentido de um “seguro nacional do trânsito”.

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