O Bateau Mouche e o tatu

No alvoroço das manchetes e dos comentários em torno dessse terrível acidente de Ano Novo, a imprensa publicou pesquisa de opinião pública acerca do assunto.

A maioria dos entrevistados manifestou firmemente a certeza de que ia dar em nada e que, passada a onda dos noticiários, logo em seguida cairia tudo no esquecimento. Todos estavam convictos da impunidade dos responsáveis.

Realmente, dizem os analistas e estudiosos dos fenômenos psico-sociais que existe uma espécie de consciência das multidões. Que o homem reunido em massa perde a sua personalidade individual, e aquele conjunto de homens passa a constituir uma nova personalidade, com idéias próprias, muitas vezes completamente diferentes das do ser isolado.

A sociedade percebe e distingue as coisas, muitas vezes indefinivelmente: sem defini-las. Ela sente, vislumbra, compreende. Só que os seus integrantes não sabem dizer por quê. É uma percepção que não sai das partes para o todo, mas, sim, do todo para as partes.

É o que se vê nitidamente nesse lamentável naufrágio do Bateau Mouche. O povo, como massa, não conhece Direito Penal, nunca estudou legislação penal, mas o seu “feeling” diz-lhe e assegura-lhe que o resultado final de tanta agitação será mesmo a impunidade.

E mais uma vez se prova o adágio popular que a voz do povo é a voz de Deus. Porque na realidade, à luz do nosso Direito e das normas legais que nos regem, só pode dar em nada mesmo.

Senão , vejamos.

Muito embora alguns, precipitadamente, queiram partir para tipificação em homicídio doloso, apelando para a controvertida e nebulosa figura do dolo eventual, o que teria existido naquele fato, desenganadamente, seria homicídio culposo.

O homicídio culposo acha-se previsto no artigo 121, parágrafo 3º do Código Penal, nos seguintes termos:

“Se o homicídio é culposo: detenção, de um a três anos”.

Como no acidente houve a morte de 56 pessoas aplica-se a regra do concurso formal, segundo a qual, quando o agente, mediante uma só ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplica-se-lhe a mais grave das penas cabíveis ou, se iguais, somente uma delas, mas aumentada, em qualquer caso, de um sexto até metade (CP, art.70).

Então, suponhamos que os suspeitos sejam indiciados, processados, julgados e condenados à pena máxima. Sendo a pena máxima do homicídio culposo três anos de detenção, fazendo-se o acréscimo máximo do concurso formal (metade), teremos a pena definitiva, total, máxima, de quatro anos e meio, isto é, três anos + um ano e meio = quatro anos e meio.

Agora examinemos os direitos dos acusados, para, em seguida, estudarmos os dos condenados.

O artigo 322 do Código de Processo Penal preceitua taxativamente o direito à fiança, nas hipóteses de infrações punidas com pena de detenção. O que se aplica ao nosso caso. O homicídio culposo é punido com pena de detenção. Logo, os acusados têm assegurado, por lei, direito de permanecerem em liberdade até o trânsito em julgado da sentença condenatória.

Mas, e após o trânsito em julgado da sentença condenatória? A resposta está no Código Penal, onde diz que o condenado não reincidente, cuja pena seja superior a 4 (quatro) anos e não exceda a 8 (oito) poderá, desde o princípio, cumpri-la em regime semi-aberto .

Quer dizer: na hipótese de condenação, e de condenação à pena máxima (o que é quase impossível, por serem primários os agentes, presumivelmente de bons antecedentes, residentes e domiciliados no distrito da culpa, onde têm patrimônio, etc.), as penas serão cumpridas em regime semi-aberto. E ainda os condenados terão direito de verem a pena privativa de liberdade substituída por restritiva de direitos e multa (artigo 44, parágrafo único), porque se trata de crime culposo.

A pena restritiva de direitos consiste na prestação de serviços à comunidade (tarefas gratuitas junto a entidades assistenciais, hospitais, escolas, orfanatos etc.), proibição do exercício de profissão, atividade ou ofício.

Isso tudo pode ser resumido em poucas palavras: vai dar em nada, mesmo. Não pode deixar de dar em nada, mesmo. É impossível deixar de dar em nada.

Suponhamos, agora, que em vez de 56 pessoas estivessem naquele Bateau Mouche 56 tatus ou quaisquer outros animais silvestres .

Aí a coisa mudaria de figura.

Se no famigerado barco estivessem caçadores levando 56 tatus, caçados ilegalmente, para serem vendidos, estariam eles incursos na Lei nº 5197, de 3 de janeiro de 1967, alterada pela Lei 7.653 de 12 de fevereiro de 1988.

Eis que a Lei 7.653, de 12 de fevereiro de 1988, estabelece para esses crimes a pena de reclusão de dois a cinco anos (artigo 1º), e que esses crimes são inafiançáveis .

Com a pena máxima de cinco anos, juntando-se o concurso formal, passa-se para sete anos e meio; como a pena é de reclusão, não pode haver substituição por pena restritiva de direitos e multa.

E, o que é pior: os acusados terão que aguardar presos o desenrolar do processo até o julgamento final, porque se trata de crime inafiançável. Ressalvada a liberação pela Justiça, através de habeas corpus (o que seria improvável, dada a existência de clamor público ).

Aliás, a prova disto está em que há alguns meses a imprensa noticiou que cinco operários ficaram presos 18 dias porque haviam caçado um tatu em São Paulo. E no Rio de Janeiro os supostos responsáveis pelo trágico acidente, presos por inconcebível e injustificável decisão judicial, foram soltos 24 ou 48 horas após.

Vê-se, por conseguinte, que a consciência tranquila das multidões apreendeu bem: muito reduzido é o valor da vida humana em nosso País. Não é este o bem jurídico mais valioso tutelado por nosso sistema penal.

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