Atos e intenções

Os gregos antigos entendiam que o homem tem duas almas: uma, subjetiva, e a outra, objetiva. Segundo eles, vivemos em dois mundos: um, aquele que vai na nossa idéia, na nossa cabeça, na nossa imaginação; e o outro, aquele que existe na nossa realidade, nas nossas ações, nos nossos atos.

Essas observações de filósofos da antiguidade grega vieram depois a ser confirmadas por Freud, quando disse que o que vai no nosso interior, nem nós mesmos sabemos. Daí a necessidade da psicanálise para desvendar os mistérios do “eu profundo”.

Por isso existe a expressão popular que diz que “fulano está no mundo da lua”, ou seja, pensa coisas completamente dissociadas da realidade.

Há, de fato, muitas pessoas sérias, responsáveis, criteriosas e perfeitamente concentradas nos seus negócios e nas suas responsabilidades familiares e sociais, e que, no entanto, têm planos e pensamentos absurdos, mirabolantes, ilógicos, confusos, que muitas vezes causam espanto e risos.

Isto tudo nos vem à mente quando analisamos o que se passa com relação ao problema carcerário, no nosso País, neste princípio de século e de milênio.

Se não, vejamos.

Nossa Constituição de 1824, editada logo após a Proclamação da Independência, há, portanto, 176 anos, já dizia textualmente: “As cadeias serão seguras, limpas, e bem arejadas, havendo diversas casas para separação dos réus, conforme suas circunstâncias, e natureza dos seus crimes” (Art. 179, XXI).

Essas mesmas intenções orientaram todas nossas Constituições a partir de então, sendo que a atual, de 1988, que ainda está em vigor, não obstante já ter sido alterada, até agora, por 37 emendas, sendo 6 de revisão, e à qual foram apresentadas 1.233 emendas no Senado e 1.191 emendas na Câmara dos Deputados, dispõe textualmente:

  1. A pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado (art. 5º, XLVIII).
  1. É assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral (art. 5º, XLIX).
  1. Às presidiárias serão asseguradas condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação (art. 5º, L).

Acontece que, segundo levantamento procedido pela Comissão Parlamentar de Inquérito constituída especificamente para apurar a situação real do sistema penitenciário brasileiro, ficou constatado que a realidade está muito distante do que consta do texto da Lei Magna do nosso País, e que vem sendo repetido em todos os textos constitucionais desde a proclamação da Independência.

Basta dizer que a realidade mostrou-se tão escandalosa e escabrosa, que repercutiu internacionalmente, sendo que a “Revue Internationale de Droit Pénal” chegou a publicar impressionante artigo de Peter Aebersold registrando, com revolta, o quadro existente no sistema prisional brasileiro, chamando a atenção sobretudo para a escandalosa e imoral “superpopulação carcerária”, onde encontram-se seres humanos amontoados pior do que animais. Registrou que em celas destinadas a 16 presos, havia 80, 90 e até mesmo mais de 100.

Ocorre tudo isto, apesar de nossa Lei das Execuções Penais prescrever taxativamente que “o estabelecimento penal deverá ter lotação compatível com a sua estrutura e finalidade”, e, “o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária determinará o limite máximo de capacidade do estabelecimento, atendendo a sua natureza e peculiaridades” (Art. 85 “caput” e 85, parág. único).

Essa Lei, que se mostra, inegavelmente, mais teórica do que prática, dispõe, mais ainda, que “o condenado será alojado em cela individual que conterá dormitório, aparelho sanitário e lavatório” (art. 88), e, “são requisitos básicos da unidade celular: a) salubridade do ambiente pela concorrência dos fatores de aeração, insolação e condicionamento térmico adequado à existência humana” (art. 88).

Diante da enorme distância entre o que existe e o que se prega, parece que razões tem Lichtenberg quando diz que “na atualidade procura-se, em todas as partes, divulgar a sabedoria. Quem sabe se dentro de algum tempo não haverá Universidades destinadas a restabelecer a antiga ignorância”.

A propósito, vale relembrar Dostoyevski, quando observava que “o grau de civilização de uma sociedade pode ser julgado ao se entrar em suas prisões”.

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