Das origens

Desde que o mundo é mundo, ou melhor, desde que este planeta começou a ser habitado e povoado pelos homens, houve sucessivamente duas formas de vida: a humanidade nômade e a humanidade sedentária.

A humanidade nômade, cujos últimos sobreviventes desaparecem rapidamente, pelo menos os que não se adaptem, pertence, na realidade, à pré-história; não se poderia ligar a ela senão certas relações de homem a homem, tais como aquelas do parentesco e da clientela, cujas origens são, aliás, obscuras. Para todo o resto do estado social há como um fosso.

As populações nômades, voltadas para a colheita dos frutos espontâneos, à caça e à pesca, não conhecem a obrigação do trabalho regular; vivem do dia a dia, sem reservas nem capital; não alcançam a vida urbana e não conhecem civilização.

Não se saberá provavelmente jamais em que tempo, em que lugar, sob a influência de que circunstâncias nem por quais transições se produziu a metamorfose. As mais longínquas tradições que se possui são relativas à última fase, quer dizer, à luta da vida agrícola contra a vida pastoril, que já está associada a um certo trabalho.

O certo é que, depois de viver, durante muitos séculos, apenas da caça e da pesca, dos frutos da terra e do mar, ora num lugar, ora noutro, sempre caminhando, vivendo “ao Deus dará”, houve, finalmente, o triunfo da vida agrícola sobre a vida pastoril e sobre o nomadismo, e o homem passou a viver em lugares fixos e determinados, cultivando a terra e criando animais para o seu sustento.

A idade sedentária assinala o aparecimento desta novidade: a necessidade do trabalho regular para a subsistência, que é preciso doravante lavrar a terra para a cultura, e, logo, a necessidade de reservas acumuladas para remediar a intermitência das colheitas; reservas que estarão na origem do capital. Em seguida, a vida sedentária, por razões de segurança, leva à criação de cidades e a vida urbana gera a civilização, palavra cuja raíz encontra-se em civitas.

Daí surgiu a necessidade de uma “ordem social”, de uma “organização social”, disciplinando o comportamento dos homens entre si.

É com a humanidade sedentária que começa a civilização e a história, assim como a maior parte das instituições que nos são familiares, por exemplo, do ponto de vista político, o regime de Estado; do ponto de vista social, a propriedade privada e o comércio jurídico individualista.

Os inícios da transformação deveriam, com efeito, ser extremamente penosos, porque o trabalho regular é tão pouco natural ao homem, quanto, a dizer a verdade, ele jamais se habituou com o mesmo. Por um paradoxo notável, a civilização sedentária se desenvolveu apesar de repousar sobre uma base detestada.

Além disso, os violentos sentimentos de avareza e cobiça, que engendram a propriedade privada, deveriam formar gerações duras e cruéis.

Com o passar dos tempos essa ordem social tornou-se cada vez mais exclusivista. Formaram-se os oligopólios, dominando as atividades comerciais e industriais, e, ao seu lado, os latifúndios, mantendo as imensidões territoriais em mãos de pequenos grupos.

Aqueles que, desgraçadamente, pela fatalidade do destino ou por falta de recursos físicos ou intelectuais, não conseguiam ingressar no seleto mundo dos beneficiados pelas “musas”, eram simplesmente jogados à margem do progresso e da civilização.

É graças a essa organização social desumana e cruel, que, ainda hoje, em pleno século 21 e no terceiro milênio, coexistem duas civilizações, mesmo num País livre e democrático como o nosso: a dos que vivem adaptados ao sistema vigente, e a dos que, por incrível que pareça, ainda se acham na civilização nômade.

Acontece que os beneficiários de uma ordem social tão injusta, não querem sequer deixar que os “inadaptados” consigam o mínimo necessário ao seu sustento, à sua vida e de sua família. Assim, vemos e presenciamos a toda hora humildes caçadores e pescadores, que vivem primitivamente, ainda, da caça e da pesca, serem caçados e perseguidos, dia e noite, como se fossem terríveis criminosos.

Enquanto isso os verdadeiros criminosos, aqueles que matam, estupram, traficam drogas e violentam crianças, continuam, desafiadoramente, sua vida de crimes, semeando o terror e a violência.

Bem dizia Terêncio: “Com que falta de equidade estão ordenadas as coisas! Os que menos possuem ainda são forçados a acrescentar ao dos ricos”. Além de sofrerem as injúrias do destino, ainda têm que padecer sob as injustiças dos homens.

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