Da auto-lesão

Na História da Humanidade chama-se de Idade Média aquela fase que vai do ano 395 depois de Cristo, quando se deu a divisão do Império Romano em Império do Ocidente e Império do Oriente, até 1453 – ano da tomada de Constantinopla por Maomé II.

Esse longo período, de mais de mil anos, passou a ser dividido pelos historiadores em “baixa Idade Média” e “alta Idade Média”, compreendendo-se como “baixa” os primeiros quinhentos e poucos anos, e “alta”, os restantes.

Na baixa Idade Média discutiu-se muito acerca da auto-lesão: se seria pecado, e, por conseguinte, crime, o indivíduo causar lesão a si mesmo, ou suicidar-se.

Considerada matéria de alta indagação, doutores e sábios da época divergiam: uns achavam que o homem não podia ferir o seu próprio corpo, e muito menos matar-se, enquanto outros entendiam em sentido contrário, sustentando que pertence ao homem seu próprio corpo, podendo dispor dele como lhe aprouver.

São Tomás de Aquino, que participou ativamente dos debates, dizia que: “Sansão matou-se a si mesmo, como se lê na Escritura; e contudo é enumerado entre os santos. Logo, é lícito o matar-se a si próprio” (Sumula, vol. 5, pág. 2544).

E acrescenta o grande doutor da Igreja: “A Escritura diz que um certo Razias matou-se a si mesmo, escolhendo antes morrer nobremente do que ver-se sujeito a pecadores e padecer ultrajes indignos do seu nascimento. Ora, nada é ilícito do que fazemos nobre e fortemente. Logo, o matar-se a si mesmo não é ilícito”.

Mas, em sentido contrário, acentuava o glorioso Santo Agostinho, que viveu de 13 de novembro do ano 354 até 28 de agosto de 430: “Resta que entendamos o que foi dito do homem: Não matarás. Nem a outrem, pois, nem a ti mesmo. Portanto, quem se mata a si mesmo mata evidentemente um homem.

Matar-se a si mesmo é absolutamente ilícito, por tríplice razão. Primeiro, porque todas as coisas a si mesmas se amam; por isso é que todas naturalmente conservam o próprio ser e resistem, o mais que podem, ao que procura destruí-las. Portanto, quem se mata a si mesmo vai contra a inclinação natural e contra a caridade que todos a si mesmos se devem. Logo, matar-se a si mesmo é sempre pecado mortal, por ser um ato contrário tanto à lei natural como à caridade. Segundo, porque qualquer parte, pelo que é, pertence ao todo. Ora, cada homem é parte da comunidade e, portanto, o que é da comunidade o é. Logo, matando-se um a si mesmo, comete uma injustiça contra a comunidade, como está claro no Filósofo. Terceiro, porque a vida é um dom divino feito ao homem e dependente do poder de Deus, que mata e faz viver. Logo, quem se priva a si mesmo, da vida, peca contra Deus. Pois, só a Deus pertence julgar da morte e da vida, conforme aquilo da Escritura: Eu matarei e eu farei viver” (“Cidade de Deus”, Cap. 20).

Esta foi a tese que prevaleceu.

Durante séculos, então, a auto-lesão passou a ser punida rigorosamente. Nem mesmo os suicidas escapavam – seus corpos eram atirados às feras ou deixados apodrecer ao relento: não podiam ser enterrados em cemitérios cristãos – e havia inúmeras outras penalidades. Os parentes do suicida, por exemplo, não recebiam herança, perdiam todos os seus bens, e eram torturados e castigados em seu lugar.

A partir da baixa, até o fim da alta Idade Média e o início do Iluminismo, não se discutiu mais o assunto. Nem sequer nos meios acadêmicos.

Chegou-se à conclusão que a pena não poderia passar da pessoa do criminoso; que os parentes não deveriam pagar por erros e pecados de membro da família; que o fato de não se enterrar o corpo do suicida era anti-higiênico, punindo, não o cadáver, mas o povo em geral, que tinha que suportar o mau cheiro do corpo apodrecido. E até a própria Igreja Católica mudou de opinião, não fazendo mais qualquer objeção ao enterro em cemitério “cristão”. Aliás, a partir de então os cemitérios passaram a não pertencer mais à Igreja, pois foram secularizados, ou seja, tornaram-se “patrimônio público”, explorados pelo Estado.

Estes fatos surgem à recordação quando vemos o que se passa no nosso País em matéria de auto-lesão: aqui o cidadão que consome drogas está cometendo crime. Em todo mundo o traficante é castigado e o usuário submetido a tratamento. Aqui pune-se, também, o usuário.

Por outro lado, o atual Código de Trânsito pune aquele que dirige sem cinto de segurança. Aí não há nem auto-lesão. O que há, segundo os adeptos do uso obrigatório do cinto de segurança, é o perigo de auto-lesão. Com isso já não se pune a lesão, mas, desde logo, o simples perigo de auto-lesão.

Donde se conclui claramente que as teorias da baixa Idade Média, tão veementemente apoiadas por Santo Agostinho, depois de um mergulho de mil e quinhentos anos, retornam à tona com toda vitalidade.

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