Dos controles

Desde os tempos mais antigos existe uma separação de atividades no Poder do Estado, cabendo a uns o exercício da administração (Poder Executivo), a outros, a tarefa de fazer as leis (Poder Legislativo), e ainda a outros, as funções de julgar (Poder Judiciário).

Já na Bíblia, no Antigo Testamento, encontramos a passagem em que Jetro, o sogro de Moisés, ao vê-lo decidindo sozinho as questões que lhe eram submetidas pelo povo, aconselha-o a constituir tribunais, escolhendo “entre todo o povo homens idôneos, tementes a Deus, homens íntegros, inimigos da avareza”, para que “julguem o povo em todo tempo e te apresentem as questões de maior importância, encarregando-se eles das causas de menor vulto”, e Moisés “escolheu em todo Israel homens idôneos e colocou-os à frente do povo como chefes de milhares, chefes de centenas, chefes de cinquenta e de dez homens, que julgavam o povo em todo tempo, apresentando a Moisés os casos graves e resolvendo eles mesmos as questões de somenos importância” (Êxodo, § 18).

Esse modelo foi adotado em geral, por todos os povos do mundo: os Reis e Imperadores nomeavam Juízes, mas conservando sempre, em suas mãos, o poder de controle, ou seja, de decidir as questões muito importantes politicamente, e anular qualquer decisão judicial que lhes parecesse “relevante”.

Isso ainda existe, até hoje, em inúmeros Países reacionários e conservadores. Basta verificar o que está se passando na gloriosa Inglaterra em torno do “Caso Pinochet”, que o mundo todo vem acompanhando. Ali, um Juiz espanhol requereu a extradição de Pinochet. A mais alta Corte de Justiça indeferiu o pedido, entendendo que Pinochet goza de imunidade. Na área do Judiciário, portanto, havia julgamento definitivo. Matéria encerrada.

Eis que foi impetrado um recurso à Câmara dos Lordes (órgão do Poder Legislativo). A Câmara dos Lordes deu provimento ao recurso, entendendo que o Sr. Pinochet não goza de imunidade perante a legislação inglesa, visto que não é mais Presidente de um país, mas apenas ex-Presidente. Matéria encerrada no Legislativo.

Formulado recurso, agora, para o Ministro da Justiça (órgão do Poder Executivo), o processo lhe foi encaminhado, para dar a palavra final.

Este é o curso processual seguido secularmente nos países que adotam o controle externo do Judiciário. Só houve rompimento dessa norma com a Revolução Francesa, de 1791, quando o povo assumiu o Poder, e a Assembléia Nacional, acolhendo as idéias de Montesquieu, resolveu criar um Poder Judiciário independente, que passaria a decidir toda e qualquer questão, sem interferência do Executivo ou do Legislativo. De acordo com essa teoria, o “Poder controla o Poder”.

Com a derrota de Napoleão, em 1815, os princípios revolucionários franceses passaram a ser rejeitados pela velha Europa. Fincaram raízes, entretanto, no Novo Mundo. Os Estados Unidos, onde vinha se implantando uma das civilizações mais belas da História do Mundo, acolheram entusiasticamente a chamada teoria da repartição dos Poderes. Apesar de ter havido, de início, muita resistência, hoje, na Nação mais poderosa do mundo – pois os americanos representam para a civilização contemporânea o que os romanos representaram em sua época – existe, na teoria e na prática, um respeito absoluto às decisões judiciais, que só obedecem a um controle interno, quer dizer, àquele realizado pelos próprios órgãos do Judiciário, cabendo a última e derradeira palavra à Suprema Corte (equivalente ao nosso Supremo Tribunal Federal).

No Brasil, na época do Império, tudo funcionava como na velha Europa, com o Judiciário sob estrito controle do Executivo, cabendo ao Conselho do Império e ao Ministro da Justiça a última palavra sobre toda e qualquer questão controvertida existente na área do Judiciário.

Em 1871, Nabuco de Araújo, Ministro da Justiça no reinado de D. Pedro II, teve a idéia de acabar com essa interferência do Executivo nas coisas do Judiciário. Submeteu a matéria ao Conselho, que, após exaustivos e prolongados debates, não a aprovou.

Só após a Proclamação da República, em 1889, a Constituição de 1891 criou, afinal, três Poderes da República, independentes e harmônicos entre si, trazendo-nos a chamada “divisão de Poderes”, e não apenas “divisão de atividades”, como havia antigamente. Seguia, assim, o modelo norte-americano. Surgia, então, o Poder Judiciário como um Poder do Estado, realmente, deixando de ser mera repartição do Executivo.

Infelizmente, contudo, por incrivel que pareça, após tantos séculos de lenta e sofrida evolução, pretende-se, agora, retornar ao regime anterior à Constituição de 1891, estabelecendo-se o chamado “controle externo do Judiciário”. Esta seria uma das tais reformas inadiáveis, imprescritíveis, indispensáveis e impostergáveis, de que tanto se fala!

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