Da fidelidade partidária

Com o término da ditadura getulista, em 1945, a Constituição de 1946, elaborada numa alegre atmosfera de democracia e redemocratização, não cogitou de fidelidade partidária – os parlamentares, eleitos representantes do povo, gozavam de plena liberdade para votar apenas e tão-somente de acordo com suas consciências, sem qualquer injunção do Partido a que pertencessem.

Esse era o regime da Carta de 46, que vigeu até 31 de março de 1964, quando se desencadeou a chamada “revolução redentora e redemocratizadora”, que depôs o Sr. João Goulart da Presidência da República e instituiu um regime militar que perdurou até a promulgação da Constituição de 1988.

Eis que o General Castelo Branco, que assumiu o Poder após a queda do Sr. João Goulart, encontrando dificuldades no Congresso para aprovar suas mensagens e projetos, aos 18 de julho de 1966, com base no Ato Institucional nº 4, edita o Ato Complementar nº 16, prescrevendo taxativamente que: “será nulo o voto do Senador ou Deputado Federal que, inscrito numa organização partidária por ocasião da respectiva Convenção para escolha de candidato a Presidente e Vice-Presidente da República, sufrague candidato registrado por outra organização partidária”.

Nesse mesmo diapasão, a Lei 5.682, de 21 de julho de 1971, preceituava: “Perderá o mandato o Senador, Deputado Federal, Deputado Estadual ou Vereador que, por atitude ou pelo voto, se opuser às diretrizes legitimamente pelos órgãos de direção partidária, ou deixar seu Partido, salvo para participar, como fundador, da constituição de novo Partido” (art. 72).

A partir de então passamos a ter um Congresso acoelhado, intimidado, sujeito a todas espécies de pressões. Bastavam reunir-se a portas fechadas, três ou quatro dos “frades maiores” do Partido, que decidiam sumariamente apoiar determinada proposta do Governo, e esta, por mais abusiva e contrária aos interesses públicos que fosse, tinha que ser apoiada por todos os Parlamentares do Partido, sob pena de serem cassados seus mandatos.

Esse regime severo e rigorosíssimo, que cerceava violentamente a liberdade do Parlamentar, e que se batizou de instituto da “fidelidade partidária”, vigorou até a promulgação da Constituição de 1988 e edição da nova Lei Orgânica dos Partidos Políticos.

Essa revogação, entretanto, não surgiu milagrosamente da noite para o dia. Foi uma decorrência de pertinaz campanha na Imprensa, nos púlpitos e no seio das mais importantes organizações sociais.

Vozes das mais influentes nos meios culturais, jurídicos e científicos do País diziam e proclamavam em prosa e verso que se estava sufocando e asfixiando a consciência dos legisladores. Congressos, simpósios e reuniões que se realizavam por este País afora, em que se reunia a fina flôr da inteligência nacional, exigiam imperativamente o fim da fidelidade partidária, acentuando que o povo, ao eleger seus representantes, vota, antes de mais nada, em determinada pessoa, num nome certo, e não na sigla partidária. Que o voto de legenda é meramente subsidiário. Que, por conseguinte, o Deputado ou Senador tem, antes de tudo e sobretudo, compromissos diretos com o povo que o elegeu. Que esses compromissos se sobrepõem a decisões tomadas por meia dúzia de chefes do Partido a que se filiou, e até mesmo a decisões da própria Convenção partidária, se houver.

Ideólogos e teóricos da Democracia acentuavam enfaticamente que cada Deputado não representa apenas os eleitores que o elegeram, mas, sim, o povo todo, como uma unidade. Pela chamada “ficção democrática”, o Deputado do Espírito Santo, por exemplo, tanto representa o povo do nosso Estado, como o do Amazonas, do Pará, do Rio Grande do Sul, etc. É um representante da soberania popular. Assim, qualquer restrição ou limitação ao seu voto e às suas manifestações configuraria uma invasão na área da soberania popular.

Esses raciocínios nos vêm à mente quando, estarrecidos, lemos, ouvimos e assistimos na Imprensa, insistentes declarações de democratas autênticos, homens que se tornaram heróis nacionais combatendo a ditadura, e que agora sustentam, sem cerimônia alguma, que é preciso instituir-se no País, com a maior urgência possível, o instituto da fidelidade partidária.

Esta, segundo alardeiam aos quatro ventos, seria uma das reformas inadiáveis, imprescindíveis e indispensáveis para manutenção do Estado democrático de Direito.

Essa, como dizia Machado de Assis, é de deixar a “consciência arregalada”.

Isto nos faz lembrar aquela célebre frase de Desmoulins quando, indo para a guilhotina durante a revolução francesa, que, apaixonadamente, ajudou a realizar, proclamava: “Ó liberdade! Quantos crimes são cometidos em seu nome”.

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