Equivalências incompreensíveis

Três exemplos:

  1. O síndico de um edifício recebe dinheiro de todos os condôminos para arcar com as despesas normais do Condomínio – água, luz, pessoal, recolhimento de impostos e do Instituto, etc. Entretanto, em vez de cumprir com o seu dever, gasta tudo em proveito próprio, comprando geladeira, televisão ou carro para si e sua família.
  1. A empresa encarrega seu empregado de fazer cobranças pela rua. Eis que ele, após receber as respectivas quantias, apossa-se do dinheiro e deixa de prestar contas.
  1. O tutor ou curador de um menor ou incapaz saca dinheiro do seu tutelado ou curatelado que se achava depositado no Banco, aplicando-o como se fosse seu.

Estes e muitos outros casos semelhantes – como o do funcionário que arrecada impostos e não os repassa para o Estado – configuram aquilo que em linguagem jurídica chama-se de “depositário infiel” – o cidadão apropria-se de dinheiro ou bens dos outros, que lhe foram confiados.

Muito diferente é a situação do que comprou um carro, geladeira, televisão, etc., a prestações. Aí não houve abuso de confiança, mas, tão só e simplesmente, uma operação comercial como outra qualquer. Entretanto, por incrível que pareça, um Decreto-Lei baixado pela Junta Militar, em 1969, e que sobrevive até hoje, veio considerar os dois casos como equivalentes, e este, também, como “depositário infiel”.

Há bem pouco tempo passou pelo Tribunal caso muito interessante. O cidadão comprou um carro financiado. Pagou determinada quantia à vista e ficou de pagar o restante em 24 prestações. Até aí nada de mais. Trata-se de operação normal, realizada centenas de vezes por dia. Acontece que, desgraçadamente, quando já havia pago 3 prestações, ao se preparar para pagar a quarta prestação, seu carro foi furtado, quando se encontrava estacionado na rua.

Mesmo sem o carro, continuou pagando pontualmente, ainda, mais umas 3 ou 4 prestações. Eis que, premido pelas dificuldades, acabou por atrasar seus compromissos, dentre os quais o do carro.

A financeira bateu às portas da Justiça. Pediu que fosse fixado um prazo para que o inadimplente liquidasse seus compromissos, sob pena de devolver o carro, do qual, mediante o contrato assinado por ocasião do financiamento, seria mero “depositário”.

O indivíduo não pagou, porque, desempregado, estava sem dinheiro. Também não podia devolver o carro, porque havia sido furtado.

O Juiz, a pedido da financeira, expediu mandado determinando que o cidadão devolvesse o carro, sob pena de prisão como “depositário infiel”. Como a Polícia nunca encontrou o carro furtado, o inadimplente foi parar na cadeia.

Os Tribunais, nessas circunstâncias, vêm concedendo habeas corpus, decidindo que, tendo sido furtado o veículo, não se pode exigir do chamado “depositário” sua devolução. Mas, enquanto o cidadão constitui Advogado, aumentando, por conseguinte, suas despesas, e recorre para o Tribunal, fica mofando na cadeia, ao lado de criminosos da pior espécie.

Muitas vezes, como sua conta aumenta extraordinariamente, porque vai ter que pagar de imediato todas as prestações – vencidas e vincendas – de uma só vez, mais juros, mais multa, e mais honorários de seu advogado e do advogado da financeira, passa a vender tudo que possui, para poder sair da cadeia: vende geladeira, televisão, discos e até, muitas vezes, sua própria casa. Doutras vezes toda a família se junta, e pais, sogros, irmãos, tios, sobrinhos, etc., saem vendendo por pouco mais ou nada tudo que possam converter em dinheiro a curto prazo, para tirarem o parente do “sufoco”.

Essa situação surrealista, que remonta aos tempos dos romanos, até bem pouco tempo era algo de inacreditável, ou pelo menos excepcional e extraordinário, porque a prisão por dívidas há mais de cem anos foi suprimida do regime jurídico de todos os povos civilizados do mundo.

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